“A Mostra de Cinema de Tiradentes é uma fábrica de independência”, definiu o crítico argentino Roger Koza, programador dos festivais de Hamburgo e Viena. A 23ª edição do evento (de 24/1 a 1/2) comprova amplamente a afirmação. Entre os 113 filmes nacionais exibidos – longas, médias e curtas –, será difícil encontrar algum que não seja marcado pelo signo da inquietação e da descoberta.
Interlocução de gerações
Nos últimos dez anos, o festival tem servido para a prospecção de novos talentos, mas também como espaço de interlocução entre as jovens gerações e criadores veteranos que não perderam a chama da invenção. Nesta 23ª edição, a meu ver, foram justamente estes últimos que apresentaram os filmes mais surpreendentes.
É o caso, por exemplo, de Sertânia, de Geraldo Sarno, em cujo centro está um jagunço ferido (Vertin Moura) que agoniza no meio da caatinga nordestina. O filme, rodado num preto e branco com luz predominantemente “estourada”, é construído como um lúcido delírio barroco, em que se sobrepõem os planos da memória, do sonho e da imaginação do personagem, configurando um inventário crítico da história social da região a partir do massacre de Canudos. A remissão ao rico acervo imaginário da região – das fotos etnográficas aos clássicos do cinema novo, da literatura de cordel à iconografia religiosa – faz de Sertânia uma obra moderna que não cessa de encantar e provocar o espectador.
Igualmente encantatórios e radicais são os novos filmes de Helena Ignez, Fakir, e Paula Gaitán, É rocha e rio, Negro Léo. Mais que documentários, são ensaios audiovisuais em torno de artistas e sua relação com o real.
Fakir começa como um resgate da fascinante história dos faquires (palavra de origem árabe que significa “pobre”, “miserável”, “mendigo”), destacando alguns dos exemplos brasileiros mais célebres, depois passa a abordar as faquiresas e, por extensão, mulheres que praticam o que poderíamos chamar de “artes populares do corpo”: dançarinas, encantadoras de serpentes, lutadoras de vale-tudo. Quando nos damos conta, estamos em meio a uma reflexão profunda sobre o corpo feminino e as pulsões contraditórias que ele suscita num mundo marcadamente masculino – inclusive, e tragicamente, a pulsão de morte. Talvez seja o filme mais contundente de todo o festival.
Palavra e música
É rocha e rio, por sua vez, é uma longa (157 minutos) imersão no pensamento e no universo criativo de um artista singular, o músico e compositor Negro Léo. Nascido no Maranhão, Léo passa em revista, num fluxo praticamente ininterrupto, sua infância em bairros suburbanos do Rio, sua eclética formação musical e o desenvolvimento de seu pensamento estético, político e social. Depois do jorro verbal, o filme se abre para sua expressão musical. Em ambos os registros, impõe-se uma relação que um espectador definiu como “hipnótica” no debate do dia seguinte à exibição.
Mesmo um diretor veterano que costuma praticar uma narrativa mais clássica e convencional, como o mineiro Helvécio Ratton, trouxe a Tiradentes talvez seu filme mais ousado, O lodo, inspirado em conto do escritor Murilo Rubião. Na kafkiana linha tênue entre o real e o fantástico, o relato explora a queda de um homem comum de meia-idade (Eduardo Moreira) no abismo de suas memórias reprimidas. O filme se ancora na coesão do elenco (basicamente, membros do grupo Galpão) e numa equipe all star: fotografia de Lauro Escorel, direção de arte de Adrian Cooper, montagem de Mair Tavares.
Juventude e urgência
Na safra inevitavelmente irregular dos cineastas mais novos, predomina um certo sentimento de urgência, em que o desejo de expressar uma visão de nossas muitas mazelas às vezes se sobrepõe a um trabalho mais seguro com a forma. Do híbrido documentário Sequizágua, de Mauricio Rezende, que aborda os problemas de um assentamento extrativista no sertão mineiro, ao sangrento terror juvenil de Canto dos ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros, do ensaio de autoficcção de Ontem havia coisas estranhas no céu, de Bruno Risas, ao seco drama social goiano Mascarados, de Marcela e Henrique Borela, percebem-se buscas variadas, por vezes tateantes, de uma estética que se adeque ao que se quer expressar.
Nesse contexto heterogêneo, dois filmes mais diretamente políticos se destacam: o documentário Cadê Edson, terceiro longa-metragem de Dácia Ibiapina, e Pão e gente, segundo longa de Renan Rovida.
Cadê Edson é um vibrante registro da luta por moradia no Distrito Federal, centrado na figura de Edson Francisco da Silva, dirigente do Movimento de Resistência Popular, apresentado na mídia conservadora como “o demônio de Brasília”. É um trabalho admirável de utilização de imagens de fontes diversas (incluindo as da própria polícia e do ministério público) para a desconstrução do discurso do poder e a criação de uma contranarrativa do ponto de vista dos derrotados e excluídos.
Pão e gente, por sua vez, é uma curiosa encenação de um conflito social em torno de uma padaria e dos atores sociais envolvidos: o padeiro, o dono do imóvel, trabalhadores, fornecedores. Inspirado parcialmente num texto inacabado de Brecht, o filme, rodado em preto e branco numa rua do empobrecido bairro central paulistano dos Campos Elíseos, é uma espécie de ensaio materialista dialético que remete ao velho Teatro de Arena e, mais vagamente, ao cinema de Jean-Marie Straub.
Por último, há que destacar outra obra de baixíssimo orçamento e grande vigor, Até o fim, terceiro longa-metragem (em dois anos!) de Glenda Nicácio e Ary Rosa, dupla baseada em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Quatro irmãs se reencontram depois de anos e, ao longo de uma noite, no bar de beira de praia de uma delas, desencavam memórias dolorosas e segredos escondidos, trazendo à tona múltiplas facetas da condição da mulher negra numa sociedade racista e machista.
Nesse drama concentrado entrelaçam-se de maneira orgânica e pungente os principais temas aflorados nesta edição da mostra de Tiradentes: a opressão social, o racismo, a intolerância de gênero. A liberdade que se busca é, ao mesmo tempo, una e múltipla.