O mundo era apenas parcialmente conectado em meados da década de 1990, quando os gringos de repente descobriram Zé do Caixão. O infame e blasfemo personagem criado (e encarnado) 30 anos antes por José Mojica Marins fascinou e escandalizou aficionados por horror nos Estados Unidos, e matérias anunciando a “novidade” se espalhavam em várias publicações dedicadas ao gênero: Psychotronic Video, Cult Movies, Fangoria etc. Foi quando, por volta de 1995-1996, a distribuidora Something Weird Video, de Seattle, acrescentou em seu enorme catálogo de esquisitices 12 títulos de Mojica: “Coffin Joe Invades America!”, alardeava o anúncio das fitas. Vendidas ao preço individual pouco camarada de US$ 20, ofereciam uma imersão no cinema mojicano, incluindo raridades como Pesadelo macabro, Perversão e Quando os deuses adormecem, junto a toda a saga de Zé do Caixão.
Se, por um lado, a SWV preenchia uma lacuna significativa e ajudava a recontar a história do cinema de horror mundial a um público ávido por surpresas, por outro, oferecia um produto com pouco, quase nenhum, cuidado com a qualidade. A notícia chegava ao Brasil, e a euforia justificava os esforços dos fãs em posse de um cartão de crédito internacional para investir na importação dos títulos mais raros. O custo era indigesto: em valores atuais, cada fita sairia por pouco mais de US$ 40, ou R$ 230 na cotação de fins de 2024. Por uma reles fita VHS. Ainda assim, a euforia de ampliar a coleção de filmes raros superava a ruindade das gravações, como no caso da péssima cópia de Quando os deuses adormecem (When the Gods Fall Asleep), lançada toda em preto e branco, truncada e com 17 minutos a menos. Às vezes, nem sequer dá para entender o que está acontecendo – mas era a única cópia lançada em home video dessa pérola quase perdida.
A relevância desse contexto é colocar em discussão a urgência de que uma obra cinematográfica seja assistida em seu formato mais fiel possível ao original; pelo menos quando nos julgamos no direito de avaliar os méritos – e deméritos – de seus criadores. Por muito tempo, tempo demais, a obra de Mojica foi menosprezada, desdenhada e desqualificada por argumentos pífios e equivocados sobre seus valores de produção supostamente miseráveis, eventuais tropeços técnicos ou inventividade confundida com inabilidade. Mesmo quando suas principais obras foram lançadas em DVD e celebradas pela importância de recolocar em foco o cinema de Mojica, e não sua figura pública extravagante e muitas vezes folclórica, ainda havia problemas: matrizes não restauradas, sem a devida correção de cor e até mesmo em proporção de tela errada.
Quase 30 anos depois, o mesmo Quando os deuses adormecem, tão maltratado em sua edição em VHS ianque, finalmente pode ser visto pelo cinéfilo brasileiro, mais de meio século após sua estreia nos cinemas nacionais. Integral, nítido, em cores vibrantes escandalosamente vivas. E nem se trata de um restauro completo: os negativos originais estragaram, e o filme foi digitalizado em resolução 4K a partir de sua cópia de preservação arquivada na Cinemateca Brasileira; ou seja, o único registro em película ainda existente do filme. Mas o espetáculo enche os olhos.
Não só os olhos: visto em sua versão integral pela primeira vez pelo grande público, expande o conhecimento do que é o cinema de Mojica, contendo uma chocante, catártica e penosamente longa cena atribuída à quimbanda (com sacrifício de galinhas pretas), indo inclusive muito além das malvadezas de Zé do Caixão. Não deixa de ser irônico que, com esse filme e seu predecessor Finis hominis, nos idos de 1971-1972, com seu estudo cínico sobre fanatismo, hipocrisia, alienação e loucura, Mojica tentava se afastar do terror explícito de Zé do Caixão, que lhe causava dores de cabeça devido à perseguição ferrenha da censura. Era Mojica sendo Mojica…
Mesmo em seus lançamentos originais, poucos filmes do cineasta foram exibidos na íntegra. Desde a ameaça de interdição a O estranho mundo de Zé do Caixão, só liberado depois de ter 20 minutos extirpados, ou os inúmeros picotes que deixam Finis hominis quase incompreensível, chegando à já mencionada cena de ritual em Quando os deuses adormecem, e culminando no veto radical a Ritual dos sádicos, as obras de Mojica raras vezes eram poupadas das tesouras nervosas dos censores. Com isso, ele talvez tenha sido o diretor brasileiro mais perseguido pela censura do fim dos anos 1960 até meados da década seguinte.
Tamanha vigilância (implicância?) fez com que Mojica só encontrasse seu público em território estrangeiro, particularmente na Europa, para onde viajou com frequência durante todos os anos 1970. Homenageado em festivais de cinema fantástico, foi recebido como um mestre do terror e teve sua carreira abordada em uma matéria especial da revista espanhola Terror Fantastic, editada por Pedro Yoldi, em fevereiro de 1972, e foi destacado na capa da publicação em novembro de 1973, quando O estranho mundo de Zé do Caixão participou do Festival de Sitges. Na França, ocupou as páginas de duas edições da revista L’Écran Fantastique, em 1973, editada por Alain Schlockoff, com um texto de Luis Gasca esmiuçando seu cinema singular, exaltado na Convention du Cinéma Fantastique em Paris. No Brasil, sem publicações especializadas no gênero, Mojica era tratado com desdém e desprezo por grande parte da crítica – isso quando se davam ao trabalho de ir ver seus filmes.
As dez cópias meticulosamente recuperadas e restauradas de longas-metragens realizados por José Mojica Marins representam a parcela imprescindível de sua obra – que consiste ainda de títulos valiosos que aguardam com urgência o mesmo cuidado de preservação. Podemos dizer, de todo modo, que um terço do cinema mojicano enfim está em seu melhor formato possível, e que principalmente as novas gerações poderão conhecer a potência de seu cinema em todo o esplendor audiovisual que qualquer obra fílmica merece ser vista.
O próprio cinema brasileiro “renasceu” das trevas do abandono administrativo e do pesadelo da pandemia por meio de Zé do Caixão: 2020 ficou marcado como o primeiro ano sem Mojica – falecido em 19 de fevereiro daquele ano – e foi quando o planeta praticamente se trancou dentro de casa. A paralisação quase completa das atividades de cultura e entretenimento pareciam um luto prolongado, com cancelamento de festivais e mostras de cinema. Mas o retorno faria justiça ao mestre: a reabertura da Cinemateca Brasileira, depois de dois anos abandonada e em litígio, aconteceu em uma sexta-feira 13, em maio de 2022, com a mostra O cinema sem medo de Mojica. A seguir, em junho do mesmo ano, o Instituto Moreira Salles, em São Paulo, festejou o cineasta, ao reabrir suas portas com uma sessão comentada de O despertar da besta. O mundo teve de parar para que o cinema brasileiro mais uma vez reavaliasse seus valores.
Indiscutivelmente um de nossos principais cineastas, celebrado em todas as listas de diretores essenciais organizadas neste século por críticos e pesquisadores, José Mojica Marins é reconhecido unanimemente como o inventor do cinema de horror brasileiro e mestre absoluto do gênero no país. Sua permanência como uma figura de controvérsia, provocação e debates acalorados atesta a pujança de sua arte, que se revigora com o passar do tempo sem perder o potencial de assombro e maravilhamento. A exemplo do próprio cinema brasileiro, sua trajetória é a do eterno retorno, da (re)descoberta e da (re)avaliação. É um novo ciclo, pela primeira vez sem Mojica convivendo entre nós, restando somente seu acervo criativo. E, como diz o sádico e perverso Zé do Caixão em À meia-noite levarei sua alma, logo depois de dar fim a uma de suas inúmeras vítimas: “Foi um belo espetáculo”. Na verdade, ainda está sendo!