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Choque de dois mundos

16 de maio de 2024

Certos filmes são mais interessantes por seu pano de fundo, seu contexto histórico-social, do que propriamente pelo drama que narram. Talvez seja esse o caso de Um dia nossos segredos serão revelados, de Emily Atef, ambientado em 1990 num lugarejo rural da parte leste da Alemanha recém-reunificada. Afinal, as grandes histórias são basicamente as mesmas desde sempre; o que muda é o cenário.

A história em questão é a do triângulo amoroso formado por um casal jovem e um homem vinte anos mais velho. Maria (Marlene Burow) está morando na fazenda da família do namorado, os Brendel. Em vez de ir à escola para completar os estudos, ela passa o dia devaneando pelos campos e lendo Dostoievski. O namorado, Johannes (Cedric Eich), planeja estudar artes em Leipzig e virar fotógrafo profissional. Um casal pleno de vida, amor e sonhos, numa Alemanha renascida após a queda do muro de Berlim.

Mas o pecado mora ao lado. No terreno vizinho, Henner (Felix Kramer), um quarentão rude e solitário, mora junto a um estábulo, cria cavalos e tem a fama de ser, ele próprio, um garanhão.

 

Dolorosa reunificação

Nas frestas desse entrecho quase banal – ainda que desenvolvido com classe e delicadeza – entrevemos sutilmente as tensões e contradições daquele momento histórico crucial, e a atitude de cada indivíduo em face dele. Enquanto o drama erótico-amoroso se desenrola quase sem palavras, em gestos e olhares significativos, é nos diálogos corriqueiros e atividades do cotidiano que se revela uma página fundamental da história alemã.

O trabalho ritmado, quase marcial, dos homens e mulheres da família Brendel na colheita do trigo sugere a coletivização disciplinada das atividades na antiga Alemanha Oriental, que a reunificação veio abalar de diversas maneiras. Aqui e ali emergem, como que casualmente, sinais desse abalo.

A mãe de Maria perdeu o emprego quando a fábrica onde trabalhava fechou, “por causa da união monetária”. “Nossos negócios não são competitivos. Entrar na concorrência global do dia para a noite foi uma loucura”, queixa-se Siegfried (Florian Panzner), pai de Johannes. Por outro lado, a avó de Maria se encanta com o fato de que “não precisa bater o creme de leite agora; já vem enlatado”.

 

O filho pródigo

A chegada de Hartmut (Christian Erdmann), irmão de Siegfried, que vem visitar a mãe, os irmãos e sobrinhos depois de décadas morando no lado ocidental, acentua a fratura familiar e social. Sob o olhar desconfiado e ressentido dos irmãos, Hartmut conta sua trajetória de sucesso pessoal, de operário de construção a engenheiro e empresário. Mas a mulher de Hartmut tem que ficar em casa e cuidar das crianças porque a escola da caçula é de meio período e não dispõe de creche, o que espanta os Brendel, habituados à educação básica integral a cargo do estado.

Uma cena em particular expressa o contraste entre dois mundos que subitamente se entrechocam. Num passeio à cidade com Maria, o carrancudo Henner pede um café à garçonete, que pergunta: “Regular? Branco? Capuccino? Espresso?” Atordoado e incomodado, ele pede uma cerveja. “Lager, ale ou de trigo?”, pergunta ela. “Uma cerveja pequena”, ele balbucia em resposta. “De garrafa ou de pressão?”, insiste a garçonete. O mundo capitalista, com suas infinitas demandas, convites e tentações, é um inferno do qual Henner quer escapar o mais rápido possível e voltar para os seus cavalos.

Percebe-se então que o tema geral da complexa unificação das Alemanhas perpassa também a relação entre Henner e Maria. Ela, com a vida pela frente e todas as possibilidades em aberto. Ele, aferrado a seu pequeno mundo, sua relação ancestral com a terra e os bichos. Não é o caso de contar aqui o desfecho desse dilema.

Os bichos, aliás, desempenham um papel importante no drama. O primeiro contato entre os dois amantes se dá quando os rottweiler de Henner avançam contra Maria e ele os controla com suas ordens. Em outra passagem, para passear com o amante longe das vistas de todos, Maria se força a cavalgar, sem nunca antes ter montado num cavalo.

 

Instinto e consciência

O jogo entre instinto animal e consciência humana, entre brutalidade e delicadeza, natureza e cultura, permeia a relação entre Henner e Maria, mas antes que vejamos nisso um certo esquematismo, eis que o rústico Henner se revela um sensível leitor do poeta austríaco Georg Trakl, paixão que herdou da mãe alcóolatra.

Há ainda, para tornar o quadro mais complexo, o tema do olhar, ou do ponto de vista, realçado pelo pendor de Johannes pela fotografia. Da casa dos Brendel avista-se o estábulo de Henner, e vice-versa, e a diretora Emily Atef consegue transformar essa circunstância ótica numa questão moral, dependendo de quem olha, e em que direção.

Numa cena de abafado suspense, o apaixonado Johannes, fotografando a propriedade de Henner para um ensaio, capta sem perceber o vulto de sua namorada na janela do amante – acidente fortuito com grande potencial dramático, como a foto que está no centro de Blow up (ou do conto de Cortázar “Las babas del diablo”, que inspirou a obra-prima de Antonioni). O que o filme de Emily Atef faz desse potencial é algo que o espectador terá que descobrir por conta própria. Eu que não vou contar.

 

Dois gigantes

Morreram na semana passada dois personagens fundamentais da arte do cinema, o diretor e produtor norte-americano Roger Corman e o ator brasileiro Paulo César Pereio. Muito se falou sobre eles nos últimos dias; não é o caso de chover nesse molhado. Só de destacar o que considero a maior virtude de cada um deles.

Corman foi grande não apenas pelas dezenas de artistas que revelou, de carreiras que impulsionou, mas porque sempre chamou a atenção para o aspecto de diversão popular que o cinema guarda desde seu surgimento como atração de feira. Seus extraterrestres, vampiros, fantasmas, seres mutantes e plantas carnívoras assustaram e fizeram rir várias gerações de espectadores e inspiram até hoje criadores como o norte-americano Tim Burton e o brasileiro Ivan Cardoso, além de toda uma nova geração de realizadores mundo afora. Além de tudo, segundo consta era um sujeito boa-praça, sem pretensão, divertido e afável como alguns poucos entre seus pares: George Romero, Sergio Leone, Agnès Varda, Dario Argento. Indivíduos que gostaríamos de ter como amigos.

Pereio, por sua vez, tinha como trunfo principal a ironia com que encarava seus personagens e a si mesmo. Seu imenso talento, sua precisa modulação vocal e gestual faziam dele um ator eminentemente cinematográfico, mas do cinema moderno, autoconsciente de sua fatura, de seu caráter de faz-de-conta, em que cada expansão dramática era matizada pelo humor autoirônico, como se, no auge do drama ou da comédia, ele piscasse um olho para o espectador, dizendo: é tudo um jogo, brincadeira, mentirinha.

Pensando bem, os dois – Corman e Pereio – não estavam muito distantes um do outro.