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Um filme irresponsável

16 de agosto de 2018

Mês passado, circulou pelas redes um texto de David Cronenberg com o título “Gostaria de defender o crime da arte” (“I Would Like to Make the Case for the Crime of Art”), uma reflexão sobre o papel do artista no mundo. Ele cita Freud como ponto de partida: “Na formulação freu­diana, a civilização é repressora. Isso signi­fica que sem a repressão de impulsos humanos destrutivos e subterrâneos [ ... ] a sociedade humana na sua forma coerente e funcional não existiria. Com isso, a função da arte é exatamente a de liberar esses desejos e instintos que Freud chamava de ‘o subconsciente’; assim, toda a arte é subversiva na civilização. E se a arte é subversiva por natureza, artistas são subversivos por natureza.” E como tudo isso casa bem com a nossa exibição neste mês de Se.... (If...., Inglaterra, 1968), de Lindsay Anderson, em nossa singela seleção de filmes que estão comple­tando 50 anos.

Todo filme é retrato do seu tempo, mas alguns parecem ser ainda mais. Não é difícil ver Se.... e imaginá-lo recebendo a bola de Godard em A chinesa (La Chinoise, 1967) e repassando-a para Easy Rider (1969) e Laranja mecânica (A Clockwork Orange, 1971). O filme de Kubrick parece dar sequência ao personagem do mesmo Malcolm McDowell em Se.... Os dois filmes são complementares e anunciam, em visão retrospectiva, o punk britânico com uma década de antecedência.

Naquele momento do mundo e da cultura, vale observar os designs gráficos da época, tentativas do marketing dos grandes estúdios (entidades do establish­ment tanto quanto a escola/internato que é o cenário de Se....) para acompanhar os filmes que precisavam vender. “De que lado você estará?” era o slogan no cartaz do filme de Anderson, uma frase tão curio­samente “pra frentex” como a que a MGM usou para 2001: uma odisseia no espaço, lançado no mesmo ano – “The Ultimate Trip”, ou “A maior das viagens”.

 

Malcolm McDowell em cena de Se....

 

Em Se...., a Paramount Pictures precisou vender a ideia de uma revolução violenta no seio do elemento mais simbólico de formação social – bom, na Inglaterra, certamente: a escola. Regras, punições, hierarquias e o status quo opressor são arremessados pela janela, atacados a tiros e com explosões. O jovem Mick (Malcolm McDowell) protagoniza um ataque às instituições, e impressiona até hoje a raiva processada por Anderson para fazer esse filme.

Há uma atmosfera dúbia de licença poética, de sonho e de anarquia no quadro e na montagem que desconstrói a violência de forma um tanto única. Para tal, dois elementos se destacam: a perso­nagem mulher, interpretada por Christine Noonan, possivelmente uma projeção romântica revolucionária, mas sempre em liderança, e a já muito discutida influência do fotógrafo tcheco Miroslav Ondricek, colaborador de Milos Forman em Os amores de uma loira (1965) e O baile dos bombeiros (1967), filmes lindamente insolentes feitos na Tchecoslováquia. Todos juntos fizeram um tipo de crime artístico que lembra a súplica recente de Cronenberg. Um filme irresponsável, que hoje, infelizmente, nos parece ainda mais incomum em nosso momento político.

 

  • Kleber Mendonça Filho é coordenador de cinema do IMS