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Uma terceira criatura

19 de setembro de 2023

A Sessão Mutual Films de setembro apresenta três filmes do cineasta indiano Ruchir Joshi lançados na década de 1990. Serão apresentados em novas versões restauradas, que estrearam no Festival Internacional de Cinema de Berlim em 2019.

Joshi, que nasceu em Calcutá em 1960, é também um celebrado escritor, cujo trabalho – tanto em obras de ficção, como no romance The Last Jet-Engine Laugh (2001), quanto em textos de não ficção para publicações como a revista inglesa Granta e o jornal indiano The Telegraph – se empenha em tratar dos dilemas da Índia como um país que abriga diversas realidades.[1]

Na ocasião destas exibições brasileiras de seus filmes, Joshi escreveu o seguinte texto de apresentação, no qual elabora sua visão lúdica, política e autorreflexiva do cinema como o que ele chama de “uma terceira criatura”.

Aaron Cutler e Mariana Shellard (curadores da Sessão Mutual Films)

Cena de Egaro Mile (Onze milhas), de Ruchir Joshi

É uma honra para mim que meus filmes sejam exibidos pela primeira vez no Brasil. Apesar da Índia e do Brasil terem tanto em comum, os países são apenas uma ideia vaga na mente da maioria dos indianos que pensam no Brasil e na maioria dos brasileiros que pensam na Índia. É quase como se tivéssemos duas fileiras de dançarinos, uma diante da outra, compostas pelos principais clichês e arquétipos sobre o Brasil e sobre a Índia: de um lado está o futebol, a vasta floresta, o grande rio, Carnaval, Rio, Copacabana, a garota de Ipanema, enormes favelas e, do outro, templos, encantadores de serpentes, dançarinas exóticas, Gandhi, música de cítara, filmes de Bollywood, enormes favelas, fazendeiros famintos, os Himalaias e assim por diante.

Falando apenas por mim, tenho uma certa vergonha de saber tão pouco sobre cinema e literatura brasileiros. O que eu sei sobre o futebol[2] ou as favelas, ou sobre a floresta amazônica ou a arquitetura de Oscar Niemeyer, é principalmente mediado pelo “norte-por-noroeste”, ou seja, pelas fontes do chamado “Primeiro Mundo”.

O motivo disso acontecer, é claro, pode ser encontrado na história contínua da colonização em nosso período “pós-colonial”. Na Índia, nossa atenção externa e imaginação estão sintonizadas em duas direções principais, primeiro para os países e culturas da vizinhança imediata e, segundo, para os Estados Unidos e a Europa Ocidental. Eu vou chutar que, no Brasil, a situação é basicamente a mesma. Espero que as exibições de meus filmes sejam um pulso na corrente elétrica necessário para derrubar a parede da estática euro-americana que ofusca nossas culturas uma da outra.

 


 

Os três filmes que vão passar no Instituto Moreira Salles foram realizados entre os anos de 1988 e 1993. Especificamente, o longa Egaro Mile (Onze milhas) (Egaro Mile, 1991) foi iniciado em fevereiro de 1988 e concluído em fevereiro de 1991, o curta Memórias da cidade do leite (Memories of Milk City, 1991) foi produzido rapidamente, durante três meses, em meados de 1991, e o filme de 40 minutos Contos do planeta Kolkata (Tales from Planet Kolkata, 1993) foi realizado entre dezembro de 1992 e março de 1993, com a discussão do roteiro iniciada alguns meses antes.

Egaro Mile trafega entre os gêneros de road movie, filme-diário, filme-ensaio e uma espécie de antietnografia ou etnografia alternativa, enquanto lida com músicos folclóricos tradicionais bengalis que são conhecidos como os Bauls. Dos três filmes, é o que vai para a Bengala rural, para o interior de Calcutá, bem como para a própria cidade grande. Memórias nos leva ao outro lado do país, à cidade de Amedabade, no oeste da Índia; é uma breve meditação sobre a luta, então em curso, entre a cidade velha e a cidade já não tão nova que surgiu do outro lado do rio Sabarmati, sobre a mutação da tradição e a propagação de uma certa americanização, e sobre o empurra e puxa entre uma cultura mais antiga e gentil e os novos impulsos consumistas que já estavam alimentando uma crescente violência religiosa majoritária. Com Contos, voltamos a Calcutá e às ideias concorrentes da cidade que, entre os anos 1960 e o início dos anos 1990, foi para o Ocidente o símbolo do “pior desastre urbano do mundo” e que, para nós, nativos, foi o lugar do litost[3] interno e de absurdidades destruidoras. Algumas pessoas têm percebido esse filme como a quarta parte de uma obra, sendo as primeiras três as que compõem Egaro Mile. E, de certa forma, ele é, ao mesmo tempo que decola em uma nova direção.

Ao olhar para trás, algumas coisas vêm à mente sobre o momento em que os filmes foram feitos. Aqueles cinco anos marcaram um período turbulento no mundo. Internacionalmente, essa foi uma época em que o Muro de Berlim caiu e o Império Soviético se extinguiu (alguns diriam que deu uma pausa, antes de reacender em outro formato). Na Índia, sabíamos que o Brasil e outros países sul-americanos estavam completando o que foi chamado de “um lento retorno à democracia” ao longo da década de 1980. Em 1991, o apartheid terminou na África do Sul.

Esses cinco anos também podem ser vistos como um momento decisivo para a Índia. Duas coisas extremamente importantes aconteceram, e meus filmes são reflexos delas, mesmo que de forma bastante indireta. Em 1991, tivemos o que se chamava de “liberalização”, quando o modelo anterior de uma economia mista com forte participação do Estado foi alijado e o país se abriu para os mercados internacionais pela primeira vez na história de nossos 40 anos de independência. Talvez não por coincidência, esse também foi o momento exato em que a extrema direita hindu começou uma nova investida pelo poder, usando a desculpa de “restaurar o local de nascimento” de Lord Rama (uma das principais divindades do hinduísmo) e insistindo que esse era exatamente onde havia uma mesquita do século XVI. Em 1992, os fascistas hindus finalmente conseguiram destruir a mesquita, levando a uma revolta massiva e a um derramamento de sangue no norte e oeste da Índia, que nos levaram ao período extremamente sombrio em que nos encontramos hoje.

Em termos de cinema de arte indiano, após o grande florescimento de novos filmes não comerciais entre os anos de 1950 e 1970, os anos 1980 provaram ser de estagnação no que diz respeito aos filmes sérios de ficção. Por outro lado, essa foi a década em que o documentário independente e o cinema de não ficção indianos atingiram maturidade. Anteriormente, tínhamos feito um grande trabalho inovador sob a égide da Films Division, a instituição governamental para documentários e filmes educativos,[4] mas foi durante a década de 1980 que um grande número de filmes independentes abordando questões políticas e sociais começou a ser feito em toda a Índia. Muito disso tinha a ver com a crescente disponibilidade de equipamentos em 16 mm e estúdios de pós-produção, e, para uma importante leva de documentaristas, o aumento do interesse e financiamento de canais de televisão estrangeiros (principalmente europeus).

Trabalhei no início dos anos 1980 como assistente para um cineasta em ascensão localizado em Bombaim, com a ambição de um dia também fazer filmes de ficção que seriam exibidos em festivais ao lado dos meus heróis (e heroínas) do cinema internacional. Entretanto, também vi vários filmes em festivais e cineclubes que não se enquadravam facilmente em nenhuma das duas categorias principais de ficção e documentário. Nessa época, eu não conhecia os trabalhos de Chris Marker ou Harun Farocki, mas foi através dos filmes de Jean-Luc Godard, assim como dos escritos de Milan Kundera e Eduardo Galeano, que fui cada vez mais exposto à ideia de que uma obra artística também poderia ser uma terceira criatura – o que, no meu caso, significava fundir as formas do ensaio e do diário com as tradições cinematográficas de documentário e ficção.

Dos cineastas indianos da época que trabalhavam com não ficção, achei Mani Kaul (1944-2011) o mais interessante e desafiador. Eu admirava as conquistas formais de seus célebres primeiros longas de ficção, mas o documentário A Desert of a Thousand Lines (1986), sobre o Rajastão, sua terra natal, realmente abriu meus olhos para o que era possível fazer com a realidade filmada. Depois disso, vi dois outros documentários dele, o curta Chegada (Arrival, 1980) e o longa Dhrupad (1983), nos quais seu engajamento poético tratava respetivamente de sua amada Bombaim e do estilo de música clássica indiana pelo qual ele era apaixonado, e novamente achei seu uso da câmera emocionante e libertador. Mani também fez seu maravilhoso filme Siddheshwari (1989), em torno da grande cantora de thumri e sua cidade de Benares (também conhecida como Varanasi), mas eu só vi esse filme alguns anos depois.

Chegada (que será mostrado com meus filmes no IMS) foi especialmente importante para mim. O primeiro filme que dirigi, chamado Bargain (1985), era sobre o New Market, um enorme edifício da era vitoriana em Calcutá. Em Chegada, Kaul filmou em torno do Crawford Market, a versão de Bombaim do New Market, e eu assisti a seu filme somente depois de ter concluído meu primeiro esforço estudantil. Embora ainda gostasse de muitas das coisas do meu filme, também pude ver como Kaul destilou de maneira magistral e criativa as qualidades da observação e do comentário cinematográfico e social. Uma cena em Chegada na qual ele se afasta das atividades da rua para seguir da janela de um apartamento, em um andar alto, um pedaço de papel voando, acompanhado por um trecho de uma música dhrupad, abriu meus olhos para o que um cineasta poderia fazer ao se dar a liberdade de usar a câmera tão pessoalmente quanto se faria com uma caneta ou um pincel. Embora eu nunca tenha seguido a máxima de Kaul de que cada cena de um filme deve ser autossuficiente (eu gostava da minha montagem picotada e das minhas cenas repentinamente interrompidas), essa foi uma aprendizagem crucial à qual me apeguei com muita gratidão.


 

Meus três filmes em 16 mm foram todos patrocinados de uma forma ou de outra pelo Channel 4, no Reino Unido. Em Egaro Mile, obtivemos fundos para a conclusão graças a Alan Fountain, o coordenador de projetos do Channel 4 para filmes independentes e experimentais.[5] Os outros dois filmes fizeram parte de uma série que Fountain lançou, chamada South (South 1 e South 2, em 1991 e em 1993), para a qual cineastas do Sul Global apresentaram propostas para financiamento e exibição no canal.

Posso ver agora que meu trabalho esteve à beira de várias transformações. Os filmes foram feitos quase no final do movimento independente de 16 mm que começou na Índia no final dos anos 1970 e atingiu seu pico entre 1988 e 1995. Nessa época, câmeras DV com qualidade de transmissão entraram no mercado, assim como computadores de mesa com os quais era possível editar os filmes gravados em vídeo. Isso revolucionou a produção de não ficção em todas as áreas, do financiamento necessário à maneira como a obra poderia ser exibida em diferentes contextos. No Reino Unido, o Channel 4, que foi criado como um canal para vozes minoritárias e marginais, teve suas premissas alteradas por exigências do mercado, com pessoas como Alan Fountain sendo forçadas a sair – dali em diante, ninguém mais seria capaz de lançar esse nosso tipo de filme limítrofe para a televisão mainstream europeia. A Índia, como já disse, entrou nos primeiros dias do seu tango com o mercado global, o que significou o encerramento abrupto de qualquer espaço que pudesse existir nas redes televisivas indianas para um cinema diferente.

Dirigi alguns documentários convencionais para a televisão britânica e depois passei a trabalhar como escritor e jornalista. No cinema, fiz apenas dois vídeos ensaísticos desde então.[6] Nos 25 anos seguintes, Egaro Mile e Contos conseguiram ter vida própria, sendo programados de tempos em tempos em festivais na Índia e na Europa e ocasionalmente na América do Norte, enquanto Memórias não teve um destino tão feliz, pois não havia uma boa versão legendada do filme em DVD ou Betacam. Em 2013-2014, em parceria com o Arsenal – Institut für film und Videokunst e.V., em Berlim, iniciei um projeto de digitalização dos três filmes. Esse trabalho foi concluído no final de 2018, e os filmes restaurados começaram a ser reintroduzidos nas conversas de cinema a partir de 2019, com os anos de covid intervindo em 2020-2022.

De certa forma, esses filmes agora são duplamente terceiras criaturas. São o que eram quando foram exibidos pela primeira vez, em seu primeiro avatar, por assim dizer. Depois, foram exibidos erraticamente em mídias diferentes do 16 mm, como fitas VHS, U-Matic e Beta e, eventualmente, como DVDs, então fica a memória de como eles pareceram e se transformaram com seus diversos espectadores ao longo dos anos. E agora aqui estão, nascidos três vezes, não novos, mas novos, prontos para interagir com públicos inéditos.

Graças às restaurações do Arsenal e aos esforços da Mutual Films, eles viajam pela primeira vez ao Brasil. Aguardo ansiosamente a repercussão.

 

Ruchir Joshi, Berlim, julho de 2023

 

Aliás: Gostaria de dedicar as sessões à memória de três pessoas: Deepak Majumdar (1934-1993), Vivan Sundaram (1943-2023) e Navroze Contractor (1944-2023).

Deepak foi um poeta, escritor, pensador cultural, provocador e professor que se deslocou pela zona rural de Bengala Oriental, por Calcutá, pela América, Grécia, França e Polônia, mas acabou vivendo principalmente em Calcutá. Para aqueles de nós, sortudos o suficiente para ter aprendido com ele e alimentado uma amizade, ele foi uma presença enorme, exasperante, enervante, estimulante e inspiradora em nossas vidas.[7]

Vivan foi um dos artistas mais importantes da Índia contemporânea (e ouso dizer do mundo). Desde seus dias de estudante em Baroda e depois em Londres, por volta de 1968, ele produziu uma variedade de trabalhos surpreendentes, de desenhos e pinturas narrativas a instalações, performances e vídeos. Sempre aliado a causas e formas progressistas, Vivan inspirou e apoiou energicamente as gerações seguintes. Sua perda no início deste ano parece terrivelmente prematura, apesar dos problemas de saúde que sofreu no final de sua vida.

Navroze foi um dos maiores diretores de fotografia do cinema indiano. Ele começou a trabalhar com Mani Kaul, filmando o primoroso Duvidha (1973) com uma pequena câmera 16 mm com o mais lento dos estoques da Kodak. E, além de fotografar vários longas-metragens, ele foi um dos melhores cinegrafistas de documentários do mundo. Seu trabalho com sua esposa Deepa Dhanraj é apenas uma parte importante de sua vasta e variada obra. Sua morte em um trágico acidente de motocicleta em junho deste ano foi um golpe chocante para todos nós que o conhecíamos – mesmo aos 78 anos, Navroze era um dos mais jovens guerreiros do cinema.

 

 

 

[1] Diversos textos de Joshi foram reunidos pela equipe do Essay Film Festival, em Londres, na ocasião de sessões de seus filmes em março deste ano. Tanbém pode ser conferido um trecho de um texto de Joshi sobre as restaurações de seus filmes, “The Hiss and Scratch of Time". [Nota dos curadores]

[2] Sempre fui um torcedor do Brasil em uma cidade louca por futebol como Calcutá, que em cada Copa do Mundo fica ferozmente dividida, com cada bairro apoiando uma grande potência como Brasil, Argentina, França ou Alemanha. Nosso futebol está a anos-luz de distância no ranking mundial – eu não acredito que viverei para ver a Índia participar de uma Copa do Mundo.

[3] O termo usado pelo escritor Milan Kundera define um certo tipo de exílio, nostalgia por um lar perdido.

[4] Um bom número de filmes comissionados pela Films Division pode ser visto através do canal de YouTube da entidade. [Nota dos curadores]

[5] Mais informações sobre Fountain podem ser lidas em inglês através no site do Guardian. [Nota dos curadores]

[6] Os filme-ensaios de Joshi A Mercedes for Ashish (2005) e My Rio, My Tokio (2010) podem ser vistos aqui [Nota dos curadores]:

 

[7] Majumdar tem um papel importante nos filmes Egaro Mile (Onze milhas) e Contos do planeta Kolkata. [Nota dos curadores]