A mostra Fotografia AGNÈS VARDA Cinema está em cartaz no cinema do IMS Paulista em novembro.
Este texto faz parte do catálogo Fotografia AGNÈS VARDA Cinema, em cartaz no IMS Paulista a partir de 29 de novembro. Um projeto que engloba exposição, com curadoria de João Fernandes e Rosalie Varda e assistência de curadoria de Horrana de Kássia Santoz, e mostra de filmes em parceria com o Cinema do IMS.
Há uma riqueza de relações possíveis ao pensar no que Agnès Varda nos deixou e na forma como ela vive hoje na cultura com suas imagens. Não tenho como separar a minha admiração e o meu respeito por ela em compartimentos distintos, pois o pensamento fica mais claro quando a vejo tanto como realizador de filmes quanto como programador de cinema em salas de repertório. A mediação de tudo é a cinefilia.
Para mim, Varda ocupa uma posição rara na nossa relação com o acervo de cinema. Sua imagem, a de uma persona pop, positiva, firme e generosa, tem a força de uma marca popular, mas uma marca artesanal, e não industrial. Ela encontra, na totalidade da sua obra, uma liberdade marcante de movimentos em relação ao mundo e ao cinema. Essa liberdade me parece também inspiradora e assertiva, e vejo uma força grande de Varda com os jovens.
Creio que a cineasta Varda tem um dos legados poéticos, estéticos e políticos mais livres que temos em mãos para desfrutar, sempre com a garantia de que estará disponibilizado a partir da preservação do seu acervo via investimentos do cinema francês. Do ponto de vista comercial, há ali uma distribuição bem representada mundialmente, aspecto ausente na prática da enorme maioria dos autores de cinema em todo o mundo. Estar disponível é uma enorme conquista política.
Tudo isso está sendo observado ainda na mesma linha de tempo (a presente) que testemunhou sua perda, em 2019. Tenho curiosidade de ver se o legado deixado por Varda será fonte natural de vida no olhar para muitos no futuro. Intuo que sim, e ao afirmar isso não consigo parar de pensar outra vez nos jovens de agora e nos que ainda estão por vir.

Programar Varda para novos públicos significa abrir de pronto uma janela para muitos gestos. Sua obra oferece uma caminhada que percorreu quase 70 anos importantes que unem o século XX ao XXI, uma crônica constante e livre que permite ver muitas transições no mundo: nos seus filmes, na França, nas pessoas amadas por ela, no comportamento observado das mulheres na vida em sociedade e nos meios de realização cinematográfica. De fato, Varda registrou, ao usá-la incessantemente, as alterações na imagem do próprio cinema, da fotografia ao 16 mm, ao 35 mm, ao vídeo e ao digital.
Como realizador de filmes, deixo aqui um breve relato. A minha relação com os filmes de Varda passou pelo que considero uma linda transição. De filmes isolados que vi ao longo dos últimos 35 anos, eu fui tomando pé da grandeza da sua obra com o passar paciente do tempo, com a conquista de alguma maturidade da minha parte e de uma distância que me apresentou o todo. Foi ela quem me ensinou que um filme é de fato um filme em isolamento, mas o filme é também o fruto de muitos filmes feitos como gestos construídos de vida.
No longo processo de pesquisa para um filme que eu mesmo fiz, chamado Retratos fantasmas (2023), me ocorreu revisitar Daguerreótipos (Daguerréotypes, 1975), que havia visto muitos anos antes. Eu tinha amado esse filme na época, mas foi a redescoberta que me caiu como um presente, pois filmar uma rua e as pessoas – e o amor pelo registro e pelos rostos das pessoas – era algo que eu estava tentando passar no meu próprio filme. Isso foi algo que Varda me ensinou sem a menor pretensão de me ensinar nada.
Também fiz a grande descoberta, ainda na longa montagem do Retratos fantasmas, de um outro filme – que eu não conhecia –, o curta-metragem bancado pelo órgão francês do turismo, Ao longo da costa (Du côté de la côte, 1958). Creio que esse filme, sobre um espaço geográfico e uma região (a Côte d’Azur) já tão marcados pelas imagens do próprio cinema, foi a visualização perfeita para um realizador seguro do filme que queria fazer, mas com algumas letras importantes que estavam faltando no meu parágrafo.
Filmar o seu país, enxergar na geografia a poesia histórica e a imagem do cinema. Isso me agrada e me emociona. Grato.
