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Victor Hugo na quebrada

06 de fevereiro de 2020

Antes tarde do que nunca, é preciso falar de Os miseráveis, de Ladj Ly, que dividiu com Bacurau o prêmio do júri em Cannes e concorre pela França ao Oscar de filme estrangeiro.

Diferentemente do musical Os miseráveis, levado às telas por Tom Hooper em 2012, não se trata aqui de uma adaptação do célebre romance homônimo de Victor Hugo, mas talvez da tradução de sua essência para os dias de hoje. O que resta de menção direta ao livro é, basicamente, a localização da história no subúrbio parisiense de Montfermeil, além da frase de Hugo transcrita antes dos créditos finais, resumindo o espírito da obra: “Não há ervas daninhas nem homens maus, e sim maus cultivadores”.

https://www.youtube.com/watch?v=FN2heULHsnY

O filme de Ladj Ly é uma leitura cinematográfica contemporânea e eletrizante dessa ideia. Sua construção é diabolicamente precisa e envolvente, seu desenvolvimento é vibrante, desprovido de sentimentalismo ou de discurso edificante.

Na primeira sequência vemos meninos do bairro periférico se deslocando para o centro de Paris para assistir num telão à final da Copa do Mundo de 2018, na Rússia, vencida pela França. A euforia da multidão multiétnica, vibrando com a vitória e cantando orgulhosamente a “Marselhesa”, configura uma imagem de nação una e múltipla, de coesão na diversidade.

 

Fim da ilusão

É esse constructo ilusório que a narrativa passará a desmontar a cada cena. Dos meninos torcedores o ponto de vista se desloca para um trio de policiais que patrulha o bairro. Pelos olhos dos três (um deles recém-chegado ao distrito) exploramos um território dividido por grupos de força que se equilibram precariamente: os traficantes, os muçulmanos, o “prefeito” (uma espécie de líder miliciano local), os ciganos e a própria polícia.

A tensão cresce em torno de um acontecimento inusitado: o roubo do filhote de leão de um circo cigano por um garoto do bairro, Issa (Issa Perica), que também furta galinhas para alimentar o bicho, escondido num barraco. Uma traquinagem de criança que põe o lugar à beira de uma guerra.

Uma das astúcias da narrativa é manter o espectador envolvido com as tensas negociações entre os grupos, sem saber muito bem o que está se passando do lado dos meninos, como se o deles fosse um mundo subterrâneo com uma evolução própria, secreta. De maneira enviesada, Os miseráveis não deixa de ser um filme sobre a infância marginalizada, na linha de Los olvidados (Buñuel) ou Pixote (Babenco).

A certa altura, com os policiais acuados, explode a violência, filmada acidentalmente por um drone particular – e a disputa pela imagem passa a ser o móvel da ação, reembaralhando as cartas do jogo. Issa, o menino inquieto que é o primeiro personagem individualizado pela câmera na sequência coletiva do início, volta transformado (ou antes, deformado) para protagonizar o final, que é perturbador não só por suspender a ação em seu clímax, deixando em aberto o desfecho, mas porque, qualquer que seja este, sabemos que não será um final feliz.

 

Espanto moral

Outro lance sagaz da narrativa é levar o espectador a uma identificação, ao menos parcial, com o policial Ruiz (Damien Bonnard), o recém-chegado, que também está descobrindo aquele universo movediço e que traz no olhar uma espécie de espanto moral.

Se Bacurau expõe um Brasil cindido ao meio, Os miseráveis revela uma França estilhaçada em termos sociais, étnicos, culturais e religiosos. Com duas diferenças básicas: o filme francês não recorre à alegoria e não oferece catarse. Em vez de aplausos em cena aberta e euforia no final, deixa a plateia num silêncio incômodo.

Diretor negro nascido no Mali e criado em Montfermeil, que cumpriu pena de prisão por crime de sequestro e “desacato à autoridade”, Ly sabe muito bem do que está falando. Os miseráveis é seu primeiro longa-metragem, e é nada menos que um prodígio.

 

Kirk Douglas

A esta altura, muito já se falou sobre Kirk Douglas, que morreu ontem (5 de fevereiro) aos 103 anos. Não vou chover no molhado. Mas talvez uma frase do ator – “Construí uma carreira encarnando filhos da puta” – ajude a iluminar sua trajetória.

Filho de imigrantes judeus russos, ele teve uma infância pobre, exerceu diversos ofícios e comeu o pão que o diabo amassou antes de se impor como um dos maiores astros de sua geração, além de produtor poderoso. Seu próprio rosto, de uma virilidade áspera, seria uma imagem dessa vida de luta árdua e obstinada. Poderia ser apresentado como um caso típico de “vencedor”, de self made man, de empreendedor de sucesso.

Mas os papéis mais marcantes do ator talvez tenham sido aqueles que revelavam o lado obscuro dessa sociedade dividida em winners e losers: arrivistas sem escrúpulos como o produtor de cinema de Assim estava escrito (Vincente Minnelli, 1952) ou o jornalista de A montanha dos sete abutres (Billy Wilder, 1951). Os personagens marcantes de Douglas que eventualmente fugiam a esse perfil eram em geral estrangeiros ou pertenciam a outra cultura, como o escravo gladiador trácio Spartacus (Kubrick, 1960), o pintor holandês Van Gogh (Sede de viver, Minnelli, Cukor, 1956) ou o coronel francês Dax (Glória feita de sangue, Kubrick, 1957).

Kirk Douglas no filme Spartacus (1960), de Stanley Kubrick

Em quase cem filmes, o ator, profissional competente e tarimbado, fez todo tipo de papel, sobretudo os que denotavam vigor físico: foi boxeador, soldado, caubói, gladiador. Sempre a ideia de luta, de resistência, estampada no rosto e nos músculos.

Resistiu também, na vida fora das telas, às injustiças de seu tempo. Posicionou-se em favor dos direitos civis e contra a perseguição política marcarthista, desafiando a caça às bruxas ao contratar o escritor proscrito Dalton Trumbo para escrever o roteiro de Spartacus, produzido por ele. Em contraste com os canalhas que imortalizou nas telas, Kirk Douglas foi, ao menos na sua vida pública, um homem digno.