Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Vida frágil

07 de julho de 2022

Entram em cartaz nos cinemas dois filmes bem diversos entre si, mas que tratam, no fundo, de um tema comum: a luta desesperada de indivíduos para manter o controle do próprio corpo, da própria vida, numa situação pesadamente adversa.

O acontecimento, de Audrey Diwan, em cartaz nos cinemas do IMS, narra o drama de uma estudante francesa que engravida inesperadamente numa época (início dos anos 1960) em que o aborto era proibido e punido com rigor na França. Os primeiros soldados, de Rodrigo de Oliveira, acompanha um punhado de jovens brasileiros colhidos pela Aids num momento (1982/83) em que a doença ainda era desconhecida e imprevisível.

Baseado no romance autobiográfico homônimo de Annie Ernaux (publicado no Brasil pela Fósforo Editora), O acontecimento conta a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei), moça do interior que se empenha para entrar na faculdade de letras e aspira a ser escritora. Em sua primeira e única relação sexual com um namorado ocasional, que além de tudo mora em outra cidade, ela engravida e vê seu mundo entrar num redemoinho.

 

Corpo presente

Não é o caso de contar aqui todos os passos do seu calvário. Sem poder contar com a família, nem com os médicos, nem com o namorado e nem mesmo com as amigas mais próximas, ela se vê numa solidão radical, em que as possibilidades de saída se estreitam a cada dia. Quem poderia ajudar teme o braço implacável da lei.

Em vez de recorrer à solução fácil e surrada da locução em off para corresponder à narração em primeira pessoa do livro, a diretora Audrey Diwan opta por aderir ao corpo (geralmente ao rosto) da protagonista, que está em cena cem por cento do tempo, no mais das vezes ocupando boa parte do quadro, seja de frente, de costas ou de perfil. O recurso à profundidade de campo permite que esse corpo seja sempre visto no interior do ambiente indiferente ou hostil que o circunscreve, isto é, que o oprime.

Letreiros informando implacavelmente o tempo da gravidez (três semanas, sete semanas, dez semanas...) elevam a tensão e o suspense. Em paralelo ao avanço da gestação, vai se reduzindo o tempo que falta para os exames de ingresso na universidade, cruciais para Anne.

Há uma conjugação peculiar entre a subjetividade da protagonista e a objetividade com que o filme narra sua odisseia. Configura-se até uma certa frieza expositiva, isenta de música sentimental e outros recursos indutores da emoção, numa curiosa combinação de presença (corporal) de Anne e distanciamento emocional da narração. Essa abordagem perturbadora atinge o ápice na cena em que a protagonista vai a uma aborteira clandestina, que trata seu corpo com a firmeza impassível de um mecânico de carros.

A passagem em que Anne, sozinha como um cão, tenta consumar finalmente seu aborto é uma das mais fortes do cinema recente. Quase impossível não virar o rosto. Pelo menos desde Um assunto de mulheres (1988), de Claude Chabrol, o cinema francês não enfrentava de modo tão contundente a questão do aborto, tornada de novo tristemente atual graças ao retrocesso que estamos vivendo em países como os Estados Unidos e o Brasil.

Pelas bordas do relato afloram fraturas sociais (os estudantes e os bombeiros), culturais (a filha intelectual e os pais rústicos) e de gênero (homens decidindo o destino das mulheres), bem como uma discussão sobre o papel dos escritores na vida pública, de Victor Hugo a Sartre, de Aragon a Camus.

Faltou dizer que a atriz principal, Anamaria Vartolomei, é excepcional, transmitindo com poucos gestos uma enorme gama de ideias e emoções, e que O acontecimento ganhou o Leão de Ouro e o prêmio da crítica no último festival de Veneza.

 

Os primeiros soldados

As imagens iniciais de Os primeiros soldados, também em cartaz no IMS, são de um rapaz vestido de uniforme militar desbravando uma trilha na mata, enquanto o narrador diz em off que “ele pensava nessa selva absurda e antinatural em que os jovens morrem antes”.

Mais tarde saberemos que aquelas são cenas de um filme dentro do filme, feito como uma espécie de home movie, e que a guerra que se trava ali é de outra natureza: o embate dos organismos contra uma doença nova, desconhecida e mortal, a Aids. E a guerra não menos letal contra a estupidez moralista reinante, que chamava a enfermidade de “peste gay”.

A ação se passa toda em Vitória, Espírito Santo, e começa na virada de 1982 para 1983, quando Suzano (Johnny Massaro) está de volta de Paris para passar as festas com a irmã (Clara Choveaux) e o sobrinho (Alex Bonin). Os amigos insistem com Suzano para que passe com eles o Réveillon numa casa noturna alternativa, de público predominantemente LGBT, para usar a sigla de hoje. Ele não vai, mas o filme sim, e assim ficamos conhecendo alguns de seus amigos, em especial a travesti Rose (Renata Carvalho) e o videomaker Humberto (Victor Camilo).

 

Pânico e esperança

Diferentemente de uma obra mais panorâmica sobre os primeiros anos da Aids como E a vida continua (Roger Spottiswoode, 1993), Os primeiros soldados concentra seu olhar sobre esse pequeno grupo de personagens, sobretudo sobre Suzano, levando-nos a acompanhar as transformações de seu corpo e de sua consciência: o emagrecimento, os sarcomas, mas também o pânico, a esperança, o espanto diante da fragilidade da vida.

Se há alguma dispersão na primeira parte da narrativa, o filme cresce em densidade dramática e estética quando mergulha no pequeno mundo dos três protagonistas (Suzano, Rose e Humberto) refugiados num sítio no interior, inventando formas – inclusive estéticas – de manter a sanidade, o afeto e o humor.

Há uma manipulação eficiente dos tempos narrativos e do jogo entre as imagens “diretas” e as captadas pela câmera do videomaker Humberto. A representação ficcional como arma contra o horror numa guerra desigual onde não foram poucos os jovens que morreram antes, muito antes do que deveriam.