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Cinema nas aldeias

09 de dezembro de 2021

É impossível pensar em cinema sobre indígenas, para indígenas ou por indígenas no Brasil sem passar pelo nome de Vincent Carelli. Documentarista formidável, esse brasileiro nascido em Paris em 1953 criou há 35 anos o projeto Vídeo nas Aldeias, que busca não apenas fomentar a identidade audiovisual das nossas culturas originárias, mas também formar diretores de cinema indígenas.

Uma parte pequena mas significativa dessa trajetória criativa e de seus frutos agora está disponível na plataforma gratuita Itaú Cultural Play. Estão ali três longas-metragens fundamentais de Carelli – Corumbiara (2009), Martírio (2016) e Antônio e Piti (2019) –, além de um punhado de filmes produzidos pela Vídeo nas Aldeias, com destaque para o belo As hiper mulheres (2011), de Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette.

São filmes ricos e complexos, e não seria possível abordá-los detalhadamente aqui. Mas vale um registro geral de seus temas e um comentário sobre os métodos de filmagem e construção narrativa de Vincent Carelli.

 

Massacres sucessivos

Corumbiara aborda os sucessivos massacres (de indígenas e de sem-terra) ocorridos no sul de Rondônia, desde os anos 1980. Mais que isso, o filme, realizado em etapas ao longo de mais de vinte anos, empreende uma busca ativa dos índios isolados sobreviventes nas matas da região: provar a existência deles é essencial para impedir novos desmatamentos e extermínios empreendidos pelo agronegócio.

Reside aí um doloroso paradoxo: para ajudar os indígenas a se defender de seus agressores é preciso de certa forma persegui-los, assediá-los, perturbar seu isolamento. As imagens de um índio acuado e assustado, visto entre as frestas de sua cabana de palha, é uma síntese poderosa desse dilema. Não por acaso, entre os homens que se aproximam, ele ameaça atirar suas flechas contra aquele que porta uma câmera (Vincent Carelli), vista por ele como uma arma.

Se Corumbiara, a partir de um punhado de indígenas sobreviventes, reconstitui um processo de devastação muito mais amplo no tempo e no espaço, o escopo de Martírio é ainda maior. Ao abordar a luta dos guarani-kaiowás por seus territórios ancestrais no Mato Grosso do Sul, o documentário acaba por explanar as sucessivas ondas de exploração econômica da região desde o século 19 (erva mate, cana de açúcar, soja) e os decorrentes deslocamentos e massacres do povo kaiowá. Para estes, sua terra é onde estão sepultados seus mortos, e seu intuito é ficar nela até morrer.

Nomadismo compulsório

Mas a expansão agrícola e pecuária os obriga a um constante nomadismo, e muitos vivem hoje em acampamentos improvisados à beira das estradas. Suas roças de mandioca são destruídas em prol da expansão da onipresente soja.

Aqui também Carelli, desta vez em parceria com os codiretores Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, lança mão de materiais diversos captados ao longo de décadas, além de registros de arquivo de uma enorme diversidade, das expedições de Rondon a reportagens televisivas, passando por cinejornais oficiais da época da ditadura militar.

Imagens de manifestações indígenas em Brasília e de discursos da bancada ruralista no Congresso se alternam com cenas de agressões armadas filmadas pelos próprios kaiowás com uma câmera cedida por Carelli. Do particular ao geral, e vice-versa, é o movimento contínuo de Martírio.

Um dos momentos mais assustadores de todo o filme é um leilão de gado realizado no MS e batizado de Leilão da Resistência, em que os líderes ruralistas buscavam arregimentar forças e arrecadar fundos para contratar segurança privada (leia-se jagunços modernos) no suposto intuito de defender suas propriedades. Nos discursos de políticos como Ronaldo Caiado, Katia Abreu e Luís Carlos Heinze fica claro que o extermínio de indígenas e a destruição do meio ambiente não são eventos acidentais, mas uma diretriz política e econômica consciente.

Em contraste, outra passagem de grande impacto é o discurso de um então jovem Ailton Krenak no Congresso, clamando pelo direito indígena à vida e à identidade enquanto pinta o rosto totalmente de preto, o que realça os olhos flamejantes de dor e revolta.

Com suas duas horas e quarenta, Martírio é uma obra monumental e incontornável, que merece figurar entre os grandes filmes dedicados à questão indígena, ao lado de Serras da desordem, de Andrea Tonacci, 500 almas, de Joel Pizzini, e A última floresta, de Luiz Bolognesi.

Amor e utopia

Um tanto mais concentrado é o foco de Antônio e Piti, realizado por Vincent Carelli em parceria com Wewito Pianko, cineasta indígena formado pelo projeto Vídeo nas Aldeias. O ponto de partida são os pais de Wewito, o índio kampa (ou ashaninka) Antônio e a branca Piti. Os kampas, oriundos do Peru, vivem há pelo menos três séculos na região do alto Juruá, no atual Acre. O pai de Piti, por sua vez, era um seringueiro vindo do Nordeste que se instalou na região como “soldado da borracha”, num movimento migratório incentivado pelo governo federal.

É uma bonita história de amor, mas vai muito além disso. Piti se apaixonou muito jovem por Antônio, teve com ele um punhado de filhos e passou a defender com unhas e dentes os kampas contra as agressões e discriminações, principalmente por meio da instrução e da informação. Além do cineasta Wewito, outro de seus filhos se tornou artista e ativista cultural e um terceiro elegeu-se prefeito da cidade de Marechal Thaumaturgo.

Ao acompanhar um pouco da campanha vitoriosa deste último, conversando de casa em casa com eleitores brancos e indígenas, o filme mergulha na cultura da região. Os irmãos criaram também projetos de agricultura e artesanato ecologicamente sustentáveis junto à população local. Apesar das dificuldades e da violência sempre presentes, é um documentário bastante mais esperançoso que o trágico Martírio. Quase uma utopia possível.

Realizados sob o signo da urgência e da indignação, na interseção entre cinema e ativismo antropológico, os filmes de Vincent Carelli podem não ter o pendor de invenção dos trabalhos de um Tonacci ou um Pizzini, nem o apuro visual e a elegância das obras de Luiz Bolognesi. São mais “sujos”, tortos, irregulares. Mas têm um vigor de descoberta e revelação que os torna únicos e necessários, sobretudo numa época em que arrasar a terra e os seres que nela vivem parece ser projeto político de uma oligarquia tosca que alguns teimam em chamar de “elite”.