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Zanele Muholi – Beleza e resistência como práticas coletivas

19 de maio de 2025

A mostra Ciclo Zanele Muholi está em cartaz no cinema do IMS Paulista em maio.

 

Retratar a luta da comunidade LGBTQIAPN+ negra na África do Sul é um dos pilares da produção de Zanele Muholi (Durban, África do Sul, 1972), nome de destaque das artes visuais na contemporaneidade. Muholi, que se identifica como ativista visual, tem trabalhado de maneira incansável ao longo de mais de 20 anos a fim de denunciar violências cometidas contra seus pares, mas também, e principalmente, criar no conjunto de sua obra um lugar de resistência, beleza e afeto.

Zanele Muholi começou sua carreira a partir de um lugar de desespero. A ausência de imagens de pessoas negras e queer, somada ao crescente número de crimes de ódio praticados contra a comunidade LGBTQIAPN+ na África do Sul, levaram Muholi à fotografia e ao vídeo. Seus primeiros trabalhos possuem a urgência da denúncia, a necessidade imperiosa de dizer “nós estamos aqui, nós existimos”. David Goldblatt, fotógrafo e cronista do apartheid sul-africano, foi seu principal mentor na Market Photo Workshop, escola de fotografia que forneceu alfabetização visual para uma série de artistas que foram marginalizados pelas consequências das políticas do regime de segregação racial enfrentadas no país. Anos mais tarde, Thembela Dick, diretora de Thokozani Football Club, seria aluna de Muholi na mesma escola, reforçando a missão de não apenas retratar as pessoas, mas fornecer ferramentas para que a luta se amplie e difunda.

Difficult Love, dirigido por Zanele Muholi e Peter Goldsmid, celebra a vida e a existência de mulheres lésbicas na África do Sul. Feito em um momento em que Muholi ainda se identificava como uma mulher cis lésbica – hoje elu se identifica como uma pessoa não binária – , Difficult Love apresenta os bastidores de sua carreira e mostra como arte e o ativismo são inseparáveis em seu trabalho. Em uma produção bastante íntima e pessoal, Muholi aborda questões de raça através da relação afetiva que mantinha com uma mulher branca, mas também, e principalmente, questões de gênero que atravessam a vida da comunidade LGBTQIAPN+ sul-africana: da aceitação da família à luta por visibilidade na mídia, o direito à maternidade e a reivindicação ao direito de sentir-se africana (parte da população acreditava – e alguns ainda acreditam – que a homossexualidade seria uma característica trazida pela colonização ao continente africano).

O respeito, o afeto e a potência do coletivo são laços que unem as produções audiovisuais apresentadas no Instituto Moreira Salles. Durante todo o ano de 2013, Zanele Muholi registrou rituais de casamento e funerais da comunidade LGBTQIAPN+, momentos em que o luto e a celebração caminham juntos, criando possibilidades de festejo e encontro, proximidade e aceitação das famílias, além do reconhecimento da família estendida que é criada por laços de fraternidade, apoio e compreensão. Em Ayanda & Nhalahla's Wedding, podemos entender a importância desses rituais também como forma de reconhecimento da cidadania da comunidade LGBTQIAPN+, além de testemunhar o encontro entre gerações, a desconstrução de crenças e a realização de um arquivo visual em que as pessoas possam apenas existir e serem retratadas a partir da felicidade. O tema dos funerais aparece também em Difficult Love, em que Muholi registra a cerimônia de despedida de sua mãe, Bester, que trabalhou a vida inteira como empregada doméstica para famílias brancas. Sobre os rituais, Muholi diz:

“O casamento de Ayanda Magoloza e Nhlanhla Moremi em Katlehong ocorreu quatro meses depois que Duduzile Zozo foi assassinado em Thokoza. [...] Muitas pessoas da região participaram da cerimônia, abençoaram o casal recém-casado e oraram por eles e por seus filhos. Ansiamos por essas bênçãos, pois continuamos a ler sobre as provações e tribulações que as pessoas LGBTQIAPN+ enfrentam em suas igrejas, onde a homossexualidade é perseguida. Em 2014, quando a democracia sul-africana comemora seus 20 anos, parece mais importante do que nunca erguer novamente nossa voz contra os crimes de ódio e as discriminações feitas contra a comunidade LGBTQIAPN+.”

Detalhe de cena de Difficult Love, de Zanele Muholi e Peter Goldsmid

A coletividade e a construção de práticas de resistência em grupo aparecem também nos filmes Foot for Love e Thokozani Football Club. Ambos os filmes falam sobre a criação e manutenção de um time de futebol sul-africano composto por mulheres lésbicas. Se em Foot for Love podemos acompanhar a marcha das jogadoras e sua luta por visibilidade e direitos humanos básicos, em Thokozani Football Club é possível também compreender tanto a espacialidade onde acontecem os jogos quanto a existência de vínculos afetivos que o esporte possibilita (entre as mulheres do time, mas também nas relações de vizinhança, inclusive com homens heterossexuais, simpatizantes do clube). Nos depoimentos das jogadoras, temos mais uma vez a apresentação de uma coletividade que não apenas é representada, mas que possui autonomia de fala e criam conjuntamente com as diretoras e Zanele Muholi.

Em todos os filmes, a questão espacial é de grande importância. Grande parte das cenas tem como pano de fundo as townships, áreas urbanas sul-africanas subdesenvolvidas e racialmente segregadas, construídas nas bordas de grandes cidades, que, ao longo do apartheid, foram designadas para pessoas não brancas, especialmente pessoas negras e indianas. Durban, uma das maiores cidades da África do Sul, contém uma série de townships, incluindo Umlazi, local onde Muholi nasceu e construiu laços que guiam as produções. Da mesma maneira, quando vemos as marchas em Paris ou as jogadoras brincando na praia em um final de tarde, é impossível esquecer não só do apartheid, mas de todos os regimes de segregação racial e de gênero que proíbem pessoas negras e da comunidade LGBTQIAPN+ de habitarem os espaços públicos. Essa proibição se deu, no apartheid, de maneira legal: durante o regime, em Durban, mais de dois quilômetros de praia foi reservado para os sul-africanos brancos (que representavam 22% da população na época), o que deixou apenas 650 metros para a maioria negra (que representava 46% da população na época). A segregação, porém, continuou no pós-regime, por questões de segurança e confiança de ocupar livremente as ruas, por conta de todo o preconceito e a violência dos crimes de ódio. Nas obras de Muholi, a ocupação dos espaços públicos e coletivos – a rua, a praia ou o campo de futebol – também é uma forma de resistir.

Em Eye Me, videoinstalação produzida por Zanele Muholi, uma centena de pares de olhos nos encara. Ao longo de todo o seu trabalho, o olhar representa um papel central, questionando quem olha e quem é olhado. Ao colocar seus participantes em confronto direto com as lentes da câmera, Muholi aborda políticas de representação (tanto de raça quanto de gênero) bastante caras à história da imagem: as pessoas retratadas se empoderam das fotografias e dos vídeos, fazem perguntas e não aceitam serem mais uma vez subalternizadas. Quando pensamos em séries como Faces e Fases ou Somnyama Ngonyama, o olhar direto, propositivo e provocador dialoga diretamente com a videoinstalação e os filmes apresentados no cinema.

Ter a oportunidade de assistir a esse conjunto de filmes em português representa uma ponte importante de construção de conhecimento e colaboração diretamente entre África do Sul e Brasil. Assistir a essas produções e refletir sobre as diferenças e similaridades com nosso contexto brasileiro é também uma forma de colaborar com a luta coletiva em prol dos direitos das pessoas negras da comunidade LGBTQIAPN+ não apenas nesses países, mas de maneira mais ampla, usando a arte como ferramenta de empoderamento, denúncia e afeto. “Eu estou apenas capturando o amor”, diz Zanele Muholi.

Daniele Queiroz é curadora de arte contemporânea no Instituto Moreira Salles e cocuradora da exposição Zanele Muholi: Beleza valente, em cartaz no IMS Paulista. A exposição apresenta uma retrospectiva inédita do trabalho de Muholi, abrangendo fotografias, vídeos, pinturas e esculturas, com obras inéditas produzidas no Brasil.