Longe de representar a retirada de cena do velho fotógrafo, o período compreendido nos cadernos também coincide com o começo de uma nova e exigente atividade profissional, que levará Ferrez, aos 72 anos, a se radicar em Paris. Na Cidade Luz, ele assumirá, com impressionante energia juvenil, a representação comercial da empresa cinematográfica Marc Ferrez & Filhos em terras europeias.
Refletindo esses dois momentos tão distintos na carreira e na vida de Ferrez – o encerramento de sua atividade como fotógrafo comercial, graças à qual se tornou tão conhecido, e a implantação e consolidação dos negócios familiares no setor cinematográfico –, os cadernos apresentam conteúdos bastante heterogêneos. Inventários de negativos organizados por caixas, por formato e, às vezes, por assunto; listagens de vistas para lanternas mágicas ou para visualização recreativa em estereoscópios; contabilidade bancária; listas de encomendas de familiares, amigos e clientes; endereços e datas de aniversário de entes queridos; tarefas a cumprir e despesas correntes; fórmulas e soluções para processos fotográficos; receitas culinárias; filmes a visualizar ou distribuidores a visitar são alguns dos temas observados.
Embora possuísse enorme sensibilidade, Marc Ferrez economizava as palavras. Nas páginas manuscritas não se encontrarão reflexões estéticas, notas autobiográficas, comentários, nem, muito menos, confissões intimistas. Suas anotações sintéticas guardam informações básicas, tarefas e dados.
Essa objetividade, todavia, não deixará de revelar ao leitor atento pequenas e boas surpresas. A anotação de uma despesa poderá, por exemplo, expor as preferências etílicas do fotógrafo; uma encomenda familiar talvez permita apreciar alguns dos sofisticados hábitos de consumo de sua família; listagens de fotografias coloridas poderão indicar os roteiros de passeios realizados pelo interior da França e da Suíça, em plena Primeira Guerra Mundial.
À exceção do catálogo intitulado Máquinas e acessórios para fotografia, de 1905, e da Agenda Pathé Frères, de 1918, os demais cadernos não possuem data indicada pelo autor. Em alguns casos, contudo, foi possível atribuí-la, de forma aproximada, com o auxílio das próprias anotações, ou mesmo por meio dos carimbos das papelarias onde os cadernos foram adquiridos.
A maioria dos cadernos tampouco recebeu título original. Para facilitar a compreensão de seu conteúdo e criar distinção entre eles, foram conferidos títulos descritivos que aparecem entre colchetes nas versões transcritas.
O francês, língua materna que Ferrez utilizava para se comunicar com sua família e seus amigos mais íntimos, é empregado em boa parte de suas anotações. A escrita do fotógrafo, contudo, mostra-se tão contaminada do português, que não é raro encontrar, numa mesma frase, palavras nos dois idiomas.
A leitura de manuscritos pode, por vezes, ser uma tarefa árdua. Para amenizar esse trabalho, o conteúdo dos cadernos foi transcrito e traduzido, parcial ou totalmente, pelo paleólogo Victor Fonseca e contou com contribuições de Hortense Lestange e da autora deste texto. Apesar do esforço dispendido por todos, pedimos desculpas de antemão por palavras ou trechos que permaneceram incompreendidos. As traduções e transcrições devem continuar até cobrir a totalidade dos conteúdos.
Os cadernos serão lançados em quatro etapas, bimensalmente, até maio de 2022. O Catálogo das vistas, E. de Ferro, Marinha, do acervo do Instituto Moreira Salles, e a Agenda Pathé Frères, do Arquivo Nacional, iniciam o ciclo de publicações. O Catálogo das vistas... relaciona, sobretudo, as fotografias que integram os principais trabalhos comissionados realizados por Ferrez, como as ferrovias no sudeste e sul do Brasil, as embarcações da Marinha nacional e estrangeira, e os edifícios recém-construídos na avenida Central.
A Agenda, por sua vez, traz registros de atividades, contatos e filmes visualizados ou procurados por Ferrez no ano de 1918, em Paris. Embora com anotações dispersas e sempre breves, o documento é uma testemunha da estreita parceria comercial entre a família Ferrez e a Pathé Frères, a maior companhia cinematográfica do mundo até a década de 1920.
O projeto de difusão digital dos cadernos de Ferrez conta com a colaboração de pesquisadores convidados e dos quadros das duas instituições, que comentarão aspectos dos documentos originais. Para ilustrar pontos específicos ou se aproximar da atmosfera presente nas anotações, os cadernos serão acompanhados de conjuntos fotográficos de autoria de Marc e de seus filhos, também pertencentes aos acervos do Instituto Moreira Salles e do Arquivo Nacional. Em algumas ocasiões, foi possível alcançar maior precisão e reproduzir as próprias fotografias mencionadas nos manuscritos.
Embora nos cadernos predominem os enfoques profissionais, eles também descortinam muitos outros assuntos, como os referentes ao mundo dos afetos e às relações econômicas e de classe social. Esse entrelaçamento entre as múltiplas camadas de informação identificadas nos cadernos, os aspectos técnicos, comerciais, sociais e familiares, por exemplo, poderá tanto agregar novas tonalidades à já conhecida figura de Marc Ferrez, quanto sugerir novas trilhas para os estudos sobre a fotografia e o ofício do fotógrafo.
