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Allan da Rosa (SP)

Escritor de ficção, poesia e teatro desde 2005, criou o clássico selo Edições Toró. Finalista do Prêmio Jabuti com o livro Zumbi assombra quem?, é angoleiro, historiador, mestre em Educação e doutorando pela USP com a tese Águas de Homens Pretos: Imaginário, Cisma e Cotidiano Ancestral em São Paulo (do século 19 ao 21).

Bacterinha, Peia e João Compaixão

Quicou e cintilou no chão. Eu no quintal arregaçado de sol e ela gotejou das alturas. Transbordou do bico da urubu que eu admirava. Urubu plana sem bater asas, lição de fluidez. Voa desenhando no vasto azul, plena sintonia com a brisa. Viciados no espelho e adestrados a abominar a morte, tascamos na urubu nossa nojeira. Justo nós que mastigamos vírus e espirramos veneno com a língua pra esfolar e humilhar, pra moer gente com o verbo. Onde as urubus nos dias fechados de cinza?

Pois do céuzão deslizou a bactéria. Desviei, senão rajava em mim. Descendo fintou pipas e berros de vó. Flagrou anciãs que pitavam com as flores e papeavam com gatos e varais (Murmuravam que a netaiada estorva, mas longe despertam sodade doída). Viu mãinha nova quebrar rodo nas costas de uma cria e afagar lacrimejante a bochecha do pivete. “Sabe que é pro teu bem…”

Bactéria pingou, tonteou, trincou e se rejuntou no chão. Me apresentou sua graça, atual detentora dos direitos da morte perguntou de um casebre de pau, o bolorento onde dona Tércia banguela lambia suas remelas. Ponta firme nos invernos da quebrada, Dona Té encheu gamelas, carregou desesperadas pra advogado e pra creche, sorveu litros de lágrimas na Vila Inhame, aqui onde entuchou viga e prumo numa renca de moradias. Agora tremia seu pulso no barraco de 1 metro, abandonada na friagem por seu povaréu. Bacanas traziam cesta básica e requisitavam fotos da própria benevolência. Ela centrava energia pra flechar um escarro na testa do magnata e preferia esturricar no ganido da fome. O encontro da vírus com a anciã seria um alívio? Mostrei a casa de madeirite colada na ponte bamba.

Bacterinha gargantou que foi despejo forçado, desejava mais uns giros no bico da urubu babenta. De manhã, quando eu mexia minha vaidade na xicrinha de café, nem imaginava que seria íntimo daquela ilustre peste. Me cocei pra meter no celular um sorriso com a visita, estufar o peitoral na foto com efeito brilhante, mas sendo verdade não daria alarde e ainda desconfiariam. Talvez viesse só arregaço e palerma ia me enroscar num tribunal de rajadas. Horas e horas de sapos coachando inflamados no teclado, recheando com alguma picaretagem a fome de ilusão dos dias. Na borbulha incessante de furor e fogos de artifício, qualquer fogueira murcha e facinho o falseio vira verdade. Fato real, Bacterinha me renderia uns míseros beliscões de dopamina nos likes da turba. Tentei brecar o entusiasmo mas a goela coçava. Eu pensava a pose e a chancela de anfitrião da vírus desgramada. Sucesso é risco, certeza é a solidão de depois.

Virusinha contava tranquila a sua missão de varredura. Tombar multidões. Temeu vacinas e sabonetes, mas caiu na gandaia convidativa. Rodou muita garganta e pulmão. Frequentou palacetes, hospitais pagos em euro e ali era escorraçada. Tomou gosto em proliferar e se fincar nas favelas. Desfrutava mesmo era cheiro de pobre, pele preta, beco rachado e palafita. Eu admirava sua humilde sinceridade e agradeci em silêncio. Guardei a pergunta se era amante, filha ou mãe da Poesia. Bacterinha de carcomer e encroar as entranhas. Arrepiou, comoveu e trançou as mãos de uma penca de gente. Um bocado de moleque entrega comida na motoca, ela no ar entrega a Morte. E nem encasqueta sobre bem e mal, moral e penitência.

Atual sócia da Danadinha, da Morte, a que já pareou com banzo e com o perreio bravo de não encontrar sentido nesse circo puído de cada dia. Com terror de filho sumido, carcaça mutilada e gangrena de mão espalhada pra cotovelo, suvaco e costela. Com afogamento, com vagalhão arrastando. Morte no arremesso pro poço, o sumidouro da escravaria em Minas Geraes. Assim como a Poesia e como aquele momento em que voltamos pra rua deixando o presídio, o cemitério ou o manicômio, a Morte de um íntimo abre o pequenino espanto, apresenta a claridade das coisas. Sopra a nitidez de quanta baboseira e adiamento carregamos no calendário, nos poros, nas futricas. Chutando sonhos ou lhes temperando com poeira disfarçada de pimenta.

Morte, Poesia, Espanto, Clareza… Apalpar o silêncio com os olhos e perceber o milagre de cada instante. Simples, sem fiapo nem mancha. Na cicatriz da palma, no gatilho emperrado, na torneira seca, no mergulho fresco. Feito a Poesia que estala uma fresta de relâmpago. Feito a Morte, que traz limpidez momentânea a um palmo de cotidiano e refresca goles da memória, mesclando mistério e transparência. Invisível e imprescindível, é divina a bactéria mortífera? Eu lhe via? Santa a urubu que salivou e desperdiçou sua graça em meu quintal?

A vírus nem metia arrogância. Não empombava o peito nem me franzia a testa com desdém, tinha essa boniteza dos grandes mestres. Me observava, calma. Minha ansiedade roía unhas no apetite de uma foto nossa chacoalhando a internet (quem sabe se um patrocínio de vacina no futuro?) Foi pelo povaréu comendo dedo que Bacterinha se fartou de apodrecer gente. Nesse momento minha vizinha, a Peia, trepou no muro. Não tinha unhas, aliás não tinha a mão. Agonia marcada no olho, esfregava a orelha com seu cotoco e dali tentava desenguiçar algo. Queria despejar da cabeça um carrêgo, naquele gesto avexado de quem sai entupido de um mergulho. Peia virou sua cachola e maneta batia o pulso na orelha de cima. Sacudia o crânio atormentada e no fervo da aflição enfiou o pulso no ouvido até que derramou caldas de suas entranhas e troços de seus labirintos. Com a bochecha no beiral fechou os olhos pra sentir escoar, mas pelos supetões e tremeliques manjei que se desvencilhava também de blocos e farpas que atravessavam um funil estreito.

Escorria uma penca de palavras escamosas: Vai, diacho, pra essa caixa d´agua dos infernos! Calorão do caramba. Arreda daqui, menino demonho. Da orelha vertia litros, eram vozes da quebrada. Boca do povo é maior que a boca da noite: Foi soldada espirrada do batalhão, tramou um seguro de vida de 100 mil. A mão valia 15. Sapecou tiro na palma esquerda. Vazavam pastas de fofocas e entulhos de lorotas sofisticadas no meu canteiro, cobrindo as folhas de arruda. Pé de boldo nem via mais, soterrado de sarcasmo espesso. Minha vizinha fuçava, enfiava o braço e buscava algo no fundo. Revolvia, revolvia e tirava o pulso emplastrado de crostas. Pra cavucar mais.

Um fedor tomava conta do quintal. Meu faro em martírio, eu contraía o estômago. Nuvens à minha volta: o vapor fedregoso que exalava de Peia. Bacterinha lambia os lábios e levitava de prazeres. Minha vizinha suava na agonia do resgate. A cabeça varada pela coleção de fuleragens que lotava suas veias e costelas, pulsava no crânio e chumbava as solas. Derramou mais um cacho de vozes: Foi repentino! O redemoinho sugou o guri. Recolheram pedaços dos canos daqui até Diadema. Torneiras fechadas, semanas. 41 graus e a vila sem uma gotinha. Peia drenava vários sotaques e jorrou um bolão de uma vez: Se lascou! Tiro na própria mão, otária? A perícia da firma sorriu fino. No chamuscado da pólvora descobriu o truque e pagou nada. Hoje ela chora maneta no 'parabéns pra você'. Distingui na montoeira o timbre de um marmanjo: Vai ser bandeirinha de futebol, Peia. Enfia o braço no colete!

Dona Tércia lhe cedia ombro e farinha. Todo ano inda tinha bolinho no aniversário do finado. Sozinha a mãe cantava até a vela apagar por si. Mas veio trabuco e tiro, tramoia de seguro pra lucrar com mão inválida, e Dona Tércia zarpou amuada. A voz da anciã nem se pinça naquele mangue drenado por Peia.

Virusinha pulou pra orelha e escutei mordidas e arrotos de satisfação.

Hoje deixei casca de mamão aos sabiás e vi Bacterinha mais forte, traquinas se esfalfando no lodo. Atolada na felicidade, largou os passeios no bairro. Tem hora marcada diária com Peia: segredo delas. Vírus volta cheia pro meu quintal e ainda rói a pilha de transtornos. Torna a fedentina uma alfazema. Peralta e sapiente, chupa o derrame da vizinha. Nesse escambo, voga a quebrada segura e o mundão sem pandemia. Só não encontro o pé de arruda. No meu vizinho molecote pus arruda na orelha, o guri que provoquei pular na caixa d´agua. Janeiro tava um tição e fomos pro refresco. Ia eu saber de redemoinho? Quem deu aquela descarga? Moleque sugado na tormenta, não esqueço a cena. Uma hora chamo colírio na vista ou meto o dedo na íris pra despejar no quintal esse enguiço que me espeta as pálpebras e o peito. Aproveito Bacterinha aqui pra jantar essa encrenca. Pela boca não sei, me prometo que vou contar pra Dona Tércia ajoelhado em sua canela descascada, mas chego no seu barraco… tiro foto. Ela arma a bicuda em meu nariz e se enfeita. Eu publico antes do inchaço na cara e masco o mel dos comentários. Panca de herói, exemplo de dignidade, respeito ancestral (quando ela morrer, virá mais alarde.. talvez bico um contrato com asilo). Generosidade é palavra que me cai bem, aceito, confesso. Compaixão pode ser meu sobrenome artístico.

Publicado em 17/11/20

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Elizama Almeida, Miguel del Castillo e Rachel Valença, da equipe do IMS

Mais sobre o Programa Convida
Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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