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Contraste

Ana Paula Maia (PR)

Escritora e roteirista carioca, vive em Curitiba. Escreveu sete romances, entre eles Assim na terra como embaixo da terra e Enterre seus mortos, vencedores do Prêmio São Paulo de Literatura como melhor livro do ano de 2018 e 2019, respectivamente. É autora da série Desalma, que será lançada pelo Globoplay.

(Foto de Marcelo Correa)

E quando tudo acabar

 

Não é possível saber quando, mas vai acabar. Há quem diga que o mundo não será mais o mesmo. Que tudo será diferente e as relações serão transformadas. Eu acredito que o mundo se tornará higiênico, porém não homogêneo. Pensaremos mais ao tocar uma maçaneta e ao apertar a mão de alguém. Sentiremos desconforto em nos sentarmos tão próximos uns dos outros e aquela tossidinha três fileiras abaixo nos deixará profundamente preocupados.

Quando tudo acabar, vamos contabilizar os prejuízos, os nossos e os dos outros, e apontar aqueles que afundaram, insinuando que suas vidas não estão construídas em bases sólidas. Uns fracassarão financeiramente, outros, emocionalmente. Ainda que acreditem que seremos mais altruístas, Oxalá o queira, podemos nos tornar mais consumistas e entender que ter provisões de toda espécie pode nos ajudar a atravessar uma outra tempestade coletiva e, assim, nos assegurarmos de que os nossos estarão protegidos e assistidos.

Quando tudo acabar, vamos voltar a comprar, a comer em restaurantes, a beber e celebrar. Vamos contabilizar os prejuízos, mas vamos querer recuperar os dias de isolamento, longe dos amigos, do convívio. Do sexo sem compromisso. Das festas sem hora para terminar. Vamos querer assistir ao pôr do sol meio embriagados, seja à beira-mar, seja na sacada do prédio. Alguns amores florescerão, outros morrerão, mas no fim, quando tudo acabar, seremos o que somos novamente. Alguns mais prudentes, outros deliberadamente mais atrevidos.

Quando tudo acabar, ainda estaremos aqui. Os mortos no silêncio do sepulcro, os vivos no íntimo das lamentações. O planeta estará mais limpo, assim como os rios, os mares e os ares. Estaremos mais sadios em nossos hábitos e, talvez, menos sadios mentalmente. Sentiremos o impacto da volta da convivência. Do abraço desconfiado, do toque inesperado. Estaremos contaminados pela insegurança, pela sensação de que tudo pode não ter acabado ainda e assim vivermos no estado alarmante de que o recomeço inesperado do caos nos assalte num dia qualquer, talvez bem naquele dia em que imaginemos que tudo finalmente acabou.

 

Publicado em 6/5/20

A travessia

 

Todos os compromissos foram adiados. Alguns, cancelados. O futuro que estava tão próximo, ao alcance de apenas algumas semanas, escorregou pelo calendário e foi parar meses à frente. O presente nunca esteve tão perto e o futuro tão longe.

Os dias transcorrem num contínuo domingo. As horas parecem ter assumido outra marcação, e assim, é estranho entender se ainda é cedo ou se o dia está terminando. Quando a noite chega, o corpo está cansado de permanecer em repouso a maior parte do tempo. Ao invés de descansar, o corpo quer ação. Mas não há onde ir, muito menos com quem ir.

Para o casal de vizinhos que mora ao lado, parece ser o contrário. São três filhos pequenos e dois cachorros. Tudo é excessivo. O choro, a birra, o esgotamento. Vez ou outra, um deles chega à janela e respira fundo. O homem dá umas batidinhas no peito enquanto se espreguiça, como se isso o fizesse despertar.

A mulher fuma um cigarro e seu olhar permanece distante como se admirasse uma travessia. Nos minutos dilatados em que o cigarro é tragado, é possível notar que seus olhos e alma não estão ali, se não, do outro lado. Difícil saber se do outro lado do edifício ou do outro lado do mundo.

Eu olho para mim, para o lado de dentro. Ensimesmada, percebo que todos os dias faço a travessia. Saio em silêncio de onde estou, pisando suavemente no chão, e sim, lá estou eu. Em muitos lugares, com muitas pessoas. E o sol brilha e toca meu rosto. E eu respiro esse perfume de primavera dos dias ensolarados e limpos depois que a chuva vai embora.

O futuro foi adiado, mas ele continua lá. Os planos foram adiados, mas eles continuam lá. Mesmo tendo de parar, do lado de dentro, continuamos. Quando o fim do mundo acabar, quando a travessia para além do apocalipse for concluída, vamos nos reunir novamente, para contar as perdas e conter as desesperanças.

No íntimo, no imaginário: Eu continuo, você continua, como uma travessia subliminar, que só ocorre do lado de dentro, onde não é possível ninguém ver ou tocar.

 

Publicado em 28/4/20

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Daniel Pellizzari e Rachel Valença, da equipe do IMS

Mais sobre o Programa Convida
Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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