Ana Vaz (DF)
Cineasta e artista visual. Sua filmografia apoia-se em colagens experimentais de imagens e sons, filmados ou encontrados, para refletir sobre situações e contextos histórica e geograficamente marcados por narrativas de violência e repressão. Como prolongamento ou consequência dos seus filmes, a sua prática incorpora-se também na escrita, na pedagogia crítica, em instalações, programas de cinema ou eventos efêmeros.
PSEUDOSPHYNX
Naquele estranho verão de 2018-2019, estava tentando encontrar as partes de um quebra-cabeça que veio sem a imagem guia na caixa. Fui ao interior do Goiás, me reconectar com as suas águas. Tomava banho de rio todos os dias, ouvia as cachoeiras ensurdecedoras, despertando todo o corpo. Ao voltar do banho de rio, a Jasmim-Manga me chamou. Em seus troncos e folhas, uma infestação de lagartas de fogo. Elas comiam toda a seiva branca e abundante das folhas da árvore ao ritmo e forma de um acordeão ranhoso. Rem-rem-rem-rem-rem-rem. Era o som inaudível que ecoava dos seus movimentos.
Filmei-as sempre temerosa de que um dia cairiam todas sobre mim, queimando toda a superfície do meu corpo numa espécie de cena de horror mística: meu corpo ardendo em chamas em transmutação com as lagartas. Isso nunca aconteceu, mas a cada frame filmado, tinha esta imagem dentro da mente-corpo.
A imagem das lagartas de fogo devorando todas as folhas da Jasmim-Manga me pareceu de imediato — por pura ignorância biológica aliada a uma intuição psicanalítica — : a imagem da morte, da peste, do fim.
Passados dois anos, encontro-me com as lagartas novamente. As imagens ficaram guardadas na minha geladeira até finalmente conseguir o dinheiro e a coragem para revelar os 10 rolos de 16mm em 300ft gravados entre 2018-2020 (quase nada, apenas 3 min a cada muitos meses). Os 10 rolos eram apenas o começo de uma espécie de diário que tinha decidido começar a filmar em 2018, convencida que esta era uma forma fundamental de meditação sobre o efêmero agora; sobre o tempo presente, para poder, no futuro, olhar para trás, não esquecer.
Os diários começaram com um título bárbaro que acompanhavam o esprit du temps: Diários da Barbárie 1, outubro de 2018. O terceiro rolo foi estranhamente inteiro dedicado às lagartas de fogo. Esta era a única sequência inteiramente focada num só movimento: o devorar de cada folha da Jasmin-Manga pelos corpos centopédicos, fluorescentes, famigerados das lagartas. Vendo as imagens, tive a certeza de que aquela sequência era uma belíssima expressão de uma pulsão de morte. Iriam ambas — a árvore e as lagartas— desfalecer logo após o festim.
Em outubro de 2020, descubro finalmente que a intrigante ação das lagartas de fogo era muito mais uma expressão de mutualismo do que de uma pura devoração-mortífera. Uma espécie de cronotopia entre o tempo de devorar e o tempo de renascer. Pesquisando, encontro as seguintes informações: “a espécie (pseudosphynx tetrio) é bem conhecida por causar danos e desfolhar as Plumerias (Jasmin-Manga). Cada lagarta pode consumir até três folhas grandes por dia, e se a folhagem não estiver disponível ela pode continuar sua alimentação atacando o caule. Mesmo que desfolhe toda a planta, a espécie geralmente não causa a sua morte.” E ainda, “as lagartas se alimentam de plantas, e no processo desintoxicam o venenoso látex presente na maioria das Apocynaceae. Todos os anos podemos observar sempre na mesma época do ano e na mesma planta, as lindas e perigosas (impalatáveis para pássaros) lagartas coloridas desta mariposa”. Pseudosphynx tetrio é o nome científico das lagartas de fogo que, em breve, se tornarão mariposa, ou como vulgarmente (e felizmente) lhes chamamos: bruxas.
As mariposas-bruxas são relacionadas a diversas lendas, uma delas é de que durante a Inquisição na Idade Média acredita-se que “as bruxas se transformavam em mariposas, numa espécie de transformismo dos seres vivos — reais ou imaginados” e por isso mesmo reais. “Nas transformações, as bruxas se reuniam para os Sabás do diabo em forma de gatos, mariposas e outros animais, variando de acordo com a região.” Outra lenda é de que “a bruxa Ascalapha odorata é temida em toda a América, pois sua presença é associada à morte desde antes do aparecimento de Colombo.” Já “para os povos guajiros da Colômbia, a mariposa branca simboliza o espírito de um antepassado que vem visitar o mundo terreno, por isso ao ser encontrada em casa não deve ser morta”. Na Bósnia, por exemplo, “ela passou a ser um símbolo de poderes psíquicos e dos sonhos”.
Pseudosphynx é assim uma esfinge, ou seja, esfinge = monstruosidade ctônica sobre-humana que soletra charadas + pseudo = artificial, insincera, deceptiva, irreal, ilusória, mimética. Pseudosphynx ou as bruxas mantêm o seu significado velado e mantido como segredo por aquelxs que guardam na retina a impressão háptica do seu voo.
Ana Vaz, outubro 2020.
Publicado em 2/12/20
Projeto realizado a convite da área de Artes Visuais e acompanhado por Heloisa Espada, da equipe do IMS