Cotidianos
Quais eram os nomes dessas mulheres? Esta é a primeira pergunta que me vem na cabeça ao olhar esta fotografia. Observo seus rostos, como se olham, suas mãos, os xales que vestem, suas saias, o lenço que protege a cabeça, seu cabelo, os calçados. Por onde andavam? O que elas carregavam nessas cestas? De onde vieram? Quais eram seus sonhos? E seus saberes? Quais eram as suas histórias?
Refletir e pesquisar sobre o cotidiano de São Paulo é resgatar a presença de mulheres negras movimentando a cidade de várias formas. Vendiam alimentos, bebidas e fumo. Costuravam. Lavavam roupas. Orientavam trabalhos espirituais. Buscavam água em fontes, muitas vezes para as famílias escravizadoras. Limpavam as casas. Plantavam, cuidavam da terra e colhiam. Prostituíam-se. Pediam esmola. Conversavam. Conquistavam suas alforrias. Namoravam. Dançavam em batuques. Cantavam. Sofriam. Rezavam. Sentiam saudade. Aquilombavam-se.
Maria Emília Vieira, mulher negra, viveu em 1850 nesta cidade. Conhecida como Maria Punga, ela torrava café e vendia na sua própria casa, que ficava perto da Faculdade São Francisco, na região do Centro. Dizem que ela usava argolas de ouro e no colo “um raminho de arruda e figa de guiné contra mau-olhado”. Seus bolos de fubá, bolinhos de tapioca e broinhas de polvilho também faziam sucesso na freguesia, que agregava
estudantes, boiadeiros, comerciantes e artistas. Este é o primeiro café de São Paulo de que se tem registro.
A presença de mulheres negras no comércio ambulante pelas ruas também carregava significado (como ainda acontece): além de proverem alimento, muitas delas acumulavam outras funções em irmandades religiosas, juntando dinheiro para ajudarem a própria comunidade, com enterros e mais questões. Algumas eram escravizadas de ganho, outras livres. As chamadas “autoridades locais” tentaram controlar seu trabalho, que era perigoso aos olhos dos escravizadores, porque estava intimamente ligado com as relações entre as pessoas escravizadas e quilombolas. Essas quituteiras facilitavam a comunicação e a vivência da população negra: seja por encontrarem muitas pessoas todo dia, seja por venderem produtos específicos para seu povo. Enquanto elas vendiam, cantavam pontos e canções estratégicas de comércio. Na costa ocidental africana, o pequeno comércio já era uma prática de mulheres.
O Largo da Misericórdia, onde Joaquim Pinto de Oliveira, homem negro, construiu o primeiro chafariz público da cidade, era um dos lugares onde a população negra se reunia. Ali buscavam água, compravam e vendiam fumo, bebidas, quitutes, namoravam, conversavam sobre fugas, alforrias, formas para voltarem para sua terra natal... Dois quarteirões para baixo, ficava mais um ponto de concentração: a Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Lá o batuque marcava presença, junto com as quituteiras. Outra prática comum entre o povo negro era a capoeira, proibida em 1832.
Entre trabalho, torturas, proibições, jogos, danças, cantos, comida e café, os cotidianos se estabeleciam. Que nomes como o de Maria Emilia Vieira e Joaquim Pinto de Oliveira sejam registrados na história desta cidade, também arquitetada por pessoas negras. Que a importância das quituteiras e quitandeiras seja reconhecida. Que quando contem a história de São Paulo, não falem só dos imigrantes europeus, que digam também do povo negro que aqui viveu.
O texto foi escrito por Carolina Piai Vieira, narrado por Aryani Marciano, com trilha sonora de Rafael Pinho e edição de Julia Lucia Oliveira, e faz parte do projeto Um novo olhar, sobre uma narrativa ancestral.
* Este texto foi escrito em memória dessas mulheres, homens e crianças negras. Foi desenvolvido a partir de informações coletadas e sistematizadas nas pesquisas de Antonio Egydio Martins (São Paulo antigo, 1911), Maria Odila Leite da Silva Dias (Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX: Ana Gertrudes de Jesus, 1984), Maria Cristina Cortez Wissenbach (Teodora Dias da Cunha: construindo um lugar para si no
mundo da escrita e da escravidão, 2012), João Luiz Maximo da Silva (Alimentação e transformações urbanas em São Paulo no século XIX, 2014), Casé Angatu (Nem Tudo Era Italiano: São Paulo e Pobreza, 2017), Abilio Ferreira (Tebas - um negro arquiteto na São Paulo escravocrata (abordagens), 2018), e Henrique Cunha Junior e Estanislau Ferreira Bié (Bairros negros cidades negras, 2019).
Publicado em 10/11/20