Rios
De quantas lagoas, riachos, tanques são compostas as águas de um Rio?
Rio Tamanduateí, Rio Tietê, Rio enterrado, mas vivo Anhangabaú. Assim como os rios, as cidades também são compostas de diversas narrativas, com assoreamentos diversos.
De quantas histórias é feita a história de uma cidade, quem pode falar, e em que linguagem e a quem não é permitido usar a linguagem oficial, legitimada e celebrada?
Quem pode pingar e quem pode correr, assim como um grande rio?
As histórias acontecem em vários tempos, sempre que um nome é dito, um lugar lembrado, uma rua pisada, uma gota insurgente de rio que brota no asfalto fazem com que elas vivam e revivam numa dança úmida que contempla passado presente e futuro.
Salve Maria Punga, Chaguinhas, Tebas e nossos tantos outros que estão esperando que suas histórias sejam contadas.
São Paulo dos pretos e pindorâmicos, eu disse São Paulo, aquela famosa das fotos em preto e branco lindíssimas, cafés, palacetes, chapéus, vestidos volumosos, catedral da Sé, jornais, café, Viaduto do Chá, galerias, a fachada dos restaurantes italianos do Bexiga, que celebram uma cidade aberta aos imigrantes e a modernidade. Mas você já parou para pensar que imigrantes?
O governo de São Paulo possuía um projeto político de embranquecimento da cidade no pós abolição, e o que o diferencia do resto do Brasil nesse projeto é que escolheu usar quase em sua totalidade a mão de obra italiana. Temos registros dessa decisão pelos Congressos Agrícolas, onde diversos estados se reuniram para pensar o futuro do trabalho.
E assim a cidade dos italianos, portugueses e seus descendentes nascia embranquecida e modernizada por Antônio Prado. Foi o momento de enterrar os rios, calar as bocas, os tambores, criminalizar a capoeira, o comércio de rua, os benzedeiros, expulsar as populações pretas e originárias do Centro. Mas o convite aqui é para outras águas, e se direcionarmos nossa visão para além do cartão-postal e dos registros de
fotógrafos europeus, ou dos brasileiros influenciados pela vontade de criar a imagem de uma Paris dos trópicos?
Veremos mulheres e tabuleiros, tanques, um arquiteto preto, engraxates, alfaiates, aguadeiros, uma cidade úmida, mulheres lavando as roupas no Rio Tamanduateí enquanto cantam, uma cidade de muitos pretos e pindorâmicos, alguns deles nos diversos braços de rio que eram os quilombos urbanos como o Saracura no Bexiga ou o quilombo de Pinheiros. Assim aprendi a olhar a cidade com o mestre Casé Angatu, e usar das gotas que escorrem e da água que brota do chão, aprendo a ver a cidade dos meus antepassados negros e pindorâmicos, aprendo a ver as diversas resistências que existiam em torno do rio. Consegue pensar modo mais bonito e tecnológico de acabar com o plano dos racistas de eliminar os indivíduos pretos da nação do que o costume, do tempo pré abolição, na pequenina cidade de São Paulo, das mulheres escravizadas que guardavam uma parte de seus ganhos e ao invés de comprar a sua própria liberdade compravam a dos seus mais novos?
Seguimos pingando criando poças e rios e voltando para o mar...
Este texto foi escrito por Raissa Albano de Oliveira, narrado por Allan da Rosa, com trilha sonora de Rafael Pinho e edição de Júlia Lúcia de Oliveira, e faz parte do Projeto Um novo olhar, sobre uma narrativa ancestral.
Publicado em 10/11/20