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Cidinha da Silva (MG)

Mineira de Belo Horizonte, Cidinha da Silva é escritora e editora. Publicou 17 livros em diversos gêneros. Um Exu em Nova York recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional (contos, 2019) e Explosão feminista (ensaio), do qual é coautora, foi finalista do Jabuti e venceu o Prêmio Rio Literatura (ambos em 2019).

Necropolítica x Tecnologias ancestrais de produção de infinitos

Um amigo escreveu que durante a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19, seu trabalho, costumeiramente feito em casa, movia-se entre o contrapeso da sanidade mental e emocional e a realização das obrigações laborais e de sobrevivência, incluídos aí o banho, a cozinha, a faxina da casa, porque inúmeras vezes a vontade era mesmo de abandonar-se.

As casas de centena e milhar faziam festa no ranking macabro de perdas humanas que poderiam não ter ocorrido; comerciantes e suas associações de classe pressionavam para que o comércio funcionasse a plenos pulmões visando o dia das mães. Uma agonia por dia, primeiro, salvar a economia, depois, rapidamente dar fim aos corpos das mães, das mães das mães, das mães das mães das mães.

Para isso, o governo da cidade mais preparada para lidar com os quatro dígitos de mortes previstas e evitáveis anunciou medidas de impacto, pelas quais foram providenciados: quinze mil sacos reforçados para o transporte de corpos; oito câmaras frigoríficas com capacidade para guardar até mil corpos por vez enquanto aguardavam o sepultamento; trinta e oito mil novas urnas funerárias; e abertura de treze mil novas valas com apoio de quatro minirretroescavadeiras. Ufa!

As rotas de fuga eram poucas, pois naqueles dias de isolamento social ignorado por imensas faixas populacionais, incentivadas pelo governo genocida central, se uma pessoa acometida por Covid-19 ou outra doença não morresse devido ao colapso do sistema hospitalar, poderia morrer de melancolia e angústia diante daquele quadro. Podia também morrer de fome, pois para milhões de pessoas as perguntas eram bem primárias: O que vamos comer hoje? Terei comida para mim e para os meus amanhã? Quantas refeições conseguiremos fazer até o fim da semana?

Aos que tinham segurança alimentar, teto, água corrente e limpa, eletricidade, internet, salário a receber no final do mês, alguma reserva financeira ou fonte de renda mantida durante a quarentena, restava um naco de saúde mental para acionar tecnologias ancestrais de produção de infinitos, de alegria, de encantamento. A música e a conversa de dentro das telas, por meio de lives, chamadas de vídeo e uso variado de plataformas de diferentes capacidades tornaram-se fogueiras aglutinadoras, eram utilizadas como ferramentas vigorosas para romper o isolamento de maneira saudável e, não raro, promover a festa do encontro e dos afetos trocados, ainda que no modo virtual.

As lives das cantoras Rita Benneditto e Teresa Cristina foram oásis naquela quarentena. A maranhense apresentou uma série de pontos cantados para caboclos, pretos-velhos e toda a encantaria do Norte-Nordeste, recolhidas em comunidades-terreiros de todo país. E a voz melodiosa de Rita era um vetor de luz dessas energias ancestrais generosas, dinâmicas e amorosas que produziam aquele calorzinho no coração, nos pés e nas mãos, aquela limpeza da aura que todo mundo precisava, aquela massagem salvadora no Timo.

A carioca Teresa, em lives diárias e temáticas, iniciadas à meia-noite, acalentava a solidão e a insônia dos perdidos na noite, dos abatidos pela saudade. Seu oxê afiado, seu riso solto, a cerveja gelada e comidinhas, espantavam a amargura e a angústia. As lágrimas de Teresa por tudo o que a emocionasse nos convidavam também a desaguar. Todas as noites, ríamos, cantávamos e chorávamos, esperançadas pela voz e pelo corpo poético daquela sambista madura e de espírito roqueiro-transgressor-quilombola. A live de Teresa Cristina era um rio caudaloso que atravessava nossas vidas, inclusive os corações verde-e-rosa como o meu. A gente se deixava levar naquelas horinhas de descuido.

 

Publicado em 6/5/20

O fantasma de Guayaquil

 
Os tamborzeiros de Santiago avisaram aos batuqueiros de Esmeraldas que naquela noite Iku faria uma grande ronda pela Terra. Quem compartilhasse daquela fé deveria cobrir a cabeça com o pano branco, acender as luzes da casa e tentar despachar o Senhor da Morte para longe de si e dos seus.

Não houve escuta para a mensagem dos tambores, impossível superar o desespero de tantas mortes como nunca havíamos experimentado, não daquela forma em que os corpos apodreciam dentro das casas ou eram jogados nas ruas, já que não havia serviços sanitários públicos ou funerários que vencessem a demanda.

Desamparados, orávamos todas as noites, juntos, mas cada um num canto da casa, para obtermos a graça de enterrar nossos mortos. Queríamos nos despedir, velá-los, dizer, numa cerimônia coletiva, o quanto representaram para nós; lembrar as histórias vividas, chorar juntos. Queríamos nos abraçar, nós que havíamos sobrevivido. Queríamos chorar, fraquejar e ser sustentados uns pelos outros.

Não pedíamos mais saúde e vida longa ao mundo da espiritualidade, apenas clamávamos pelo direito de enterrar nossos mortos. Que eles não se tornassem corpos putrefatos em casa, que não tivéssemos de abandoná-los nas ruas ou que tivéssemos nós de abandonar nossas casas e deixá-los lá, sozinhos, até serem resgatados. Que eles não fossem amontoados na casa dos mortos e que seu odor, somado a outros no mesmo estado de decomposição, atraísse urubus.

Orávamos para que nossos mortos não integrassem a lista dos milhares de corpos depositados em valas comuns, abertas e cobertas pelo trabalho de escavadeiras. Não queríamos ver pela TV os corpos de nossos mortos alinhados em buracos retangulares imensos, abertos por máquinas e cobertos de terra, sem flores, sem choro, sem orações, sem discurso de despedida e agradecimento.

Queríamos morrer e enterrar nossos mortos com honra e dignidade, durante cerimônias de encomendação do corpo, segundo nossas tradições. Essa era nossa oração naqueles dias, enquanto Iku, resoluto, executava sua missão.

 

Publicado em 28/4/20

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