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Contraste

Denilson Baniwa (AM)

Artista visual nascido em Barcelos, no Amazonas. Seus trabalhos expressam sua vivência como um indígena do tempo presente, mesclando referências tradicionais e contemporâneas indígenas, e se apropriando de ícones ocidentais para tratar da luta dos povos originários em diversos suportes e linguagens.

Behance

(Foto de Adrian Ikematsu)

Máscaras para rituais do mundo em crise


Os mais velhos dizem que o “Senhor das Doenças*” tem uma pelagem parecida com a do bicho-preguiça e quando encontra um espírito doente o abraça e sufoca até o luto, tal como um bicho-preguiça agarra numa embaubeira. Se nada for feito e o pajé não for forte o suficiente para negociar com o “Senhor das Doenças”, o espírito do doente se vai para sempre. Dizem que o mundo em que vivemos é decorrente das grandes guerras entre os seres humanos e o mundo natural. Tornamos este planeta um contraste do mundo dos Cosmos, por isso precisamos dos pajés, benzedores e todos aqueles que fazem a comunicação com o Universo, tornando assim a nossa vida segura neste planeta.

Porém, muitas vezes esquecemos que vivemos num lugar finito e que precisa de cuidados, negamos o bem viver e lidamos por muito tempo com a emancipação de sistemas de poder. Caímos em desventura e chegam até nós os sinais do “Senhor das Doenças”.

Com a chegada de nossos “descobridores” vieram novos desafios, doenças que não estávamos acostumados a ver. Mundos acabaram, povos foram extintos, aldeias que acabaram para sempre. Tivemos que aprender novos rituais e métodos para acalmar o Senhor das doenças. Antibióticos, vacinas, remédios em embalagens de plástico ou vidro pareceram boas pussangas. Mas, não o acalmaram. Este é o momento em que revivemos a crise pujante da dor. O Covid-19 por ser algo nunca visto, nos leva a criar novos rituais de cura e cuidados para que possamos acalmar novamente o Senhor das Doenças.

As máscaras sagradas que aprendemos com nossos Avós-Universo feitas de madeira, fibras, argila, cuias, penas de pássaros que serviram como lembrança do tempo da gênese e de respeito aos nossos criadores, são senhas de acesso para o Cosmos, o invisível, o sagrado, o sobrenatural, tão importantes para manter a ordem do caos, com o que alegramos e acalmamos o Universo, passam, hoje, por uma atualização nos vários povos indígenas. Fomos obrigados a usar máscaras cirúrgicas ou feitas de tecidos costurados, até então desconhecidas por nós para nos proteger do espírito da Covid-19 e claro, junto com as máscaras vieram as regras de como usá-las com eficiência, pois não basta colocar a máscara no rosto é preciso saber as senhas de acesso aos modos de proteção. Uma atualização de firmware que o “Senhor das Doenças” nos disponibilizou.

Estes rituais hoje não vieram pelas bocas de nossos Avós, no mundo moderno chegam impressos em folhetos ou pela televisão, que também mostram como os rituais devem ser feitos passo-a-passo ao que também mostram o que acontece se não cumprirmos os rituais corretamente, não mais com metáforas e figuras de linguagem, mas com os vídeos dos mortos sendo enterrados em covas abertas às pressas. Aterrador. Um horror! Não estávamos preparados. Mas, ainda há tempo para sobrevivermos.
Embora os rituais agora sejam quase como entregas de fé, temos chances. Lavar as mãos metodicamente, higienizar-se com álcool em gel 70% entre outros pequenos rituais que se fazem parte de uma regra a ser seguida obrigatoriamente.

Uma quarentena, nada de encontros sociais nem saídas de casa. Se não é casado e não mora junto, nada de sexo. Sem visitas aos parentes pro almoço de domingo, muito menos barzinho às sextas com o pessoal do trabalho. Mantenha uma alimentação saudável, beba água, faça exercícios. Mantenha sua imunidade boa. Para uma proteção maior, usem máscaras sempre. Máscaras de rituais do mundo em crise.

Que o Senhor das Doenças veja que estamos cumprindo todos os rituais e possa se acalmar logo e nosso povo sobreviverá a mais este fim de mundo.

 

*“Senhor das Doenças” é uma tradução para português que uso aqui como proteção espiritual, não quero que Ele saiba que estou falando seu nome por aí sem permissão.

Denilson Baniwa
Máscaras para rituais do mundo em crise
Autorretratos realizados em abril, durante a quarentena de 2020.

Publicado em 8/5/20

Projeto realizado a convite da área de Fotografia Contemporânea e acompanhado por Thyago Nogueira, da equipe do IMS

Mais sobre o Programa Convida
Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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