Ge Viana (MA)
Inspirada pelos acontecimentos da vida familiar e seu cotidiano em confronto com a cultura colonizadora hegemônica e seus sistemas de arte e comunicação, Ge produz colagens decoloniais a partir de imagens de arquivo, criando experimentos urbanos em formato lambe-lambe.
Hora grande
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Atravessei o mar de Cumã com cheiro de óleo entranhado no estômago, engolindo salivas da boca. Melhor estar na terra, pois dali não me faço em vômito. Até chegar ao boqueirão... dizem lá ser a parte mais funda desse mar, quem cair vai beber água turva de mangue e sal ou virar peixe-pedra. Desse lugar, vários desencarnaram pelo tempo comido. Detalhes das joias nos dedos das mãos, unhas são pontas de lança. Punhos fechados se firmam na cintura pedindo às pareia que o ponto alto seja uma dimensão de energia favorável a nós para quebrar e fazer descer foguetes gananciosos. Não chega, vira brasa de ferro. Na hora grande se ajoelham diante das velas e continuam, a força da mata entra na comunicação.
Degenerar a imagem colonial é emenda do Brasil, um caminho que foi exprimido. Alcântara antes de ser Alcântara era chamada pelos tapuias Tapuitapera. Em conversa com Lucca Muypura destrinchamos numa corruptela de Tapuya – “tapera” vem de “taba vera” (aldeia em ruínas/abandonada), é como dizer aldeia velha dos Tapuya. Meses antes à pandemia me deparei com um banco de imagens impressas em papéis fotográficos, coladas em placas. Enlouquecida pela degenerescência das imagens – a maioria por cupins –, voltei o juízo para uma lembrança da anciã Francelina, sobrevivente do massacre dos Krahô, violentados pelos fazendeiros por volta de 1940: quando ela pronuncia o nome dos Cupen (homens não indígenas nos deixem viver), como num déficit de atenção, pensei ter ouvido cupins, baratas sociais.
Hora grande são momentos específicos do dia que se tem para rezar, um gesto de coragem, é como esse trabalho pedindo sossego das mentes e corpos dos que precisam continuar em seus quilombos, reconstrução palimpsesto analógica do cotidiano. Reimprimir o quase perdido, movimentar o desejo, picotar até perceber a carne do dedo afundar pela fricção do estilete. É a continuação herdada pelos tapuias, me lavo do sol na cidade para não deixar essa memória que nem foi minha, mas agora é. Alcântara é baladeira que cupim não rói.
Publicado em 8/12/20
Projeto realizado a convite da área de Fotografia Contemporânea e acompanhado por Thyago Nogueira, da equipe do IMS