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GEOVANI MARTINS (RJ)

Nascido em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, em 1991, o escritor foi revelado  pela Festa Literária das Periferias em 2013. Publicou seu primeiro livro, O sol na cabeça, em 2018. Finalista do Prêmio Jabuti e vencedora do Prêmio Rio Literatura, a obra foi lançada em mais de dez países.

O próximo jogo

 

De acordo com especialistas, tentar manter uma rotina é algo fundamental pra se manter equilibrado em quarentena. Assim fizemos aqui em casa. Domingo é dia de faxina. Sexta-feira é o dia da pizza. Nas quartas eu sinto saudades do futebol.

Talvez por nunca ter imaginado o mundo moderno sem a presença do esporte a falta dele tenha batido tão forte em mim. De alguma forma, foi através do futebol que realmente consegui ter dimensão do que acontecia mundo afora. Mesmo após aderir à quarentena, lá pelo meio de março, eu ainda não fazia ideia do que estava acontecendo. Quando li a notícia de que a Premier League pararia suas atividades por tempo indeterminado, entendi que algo definitivamente muito grave vinha pela frente.

A saudade do jogo de bola não bateu logo assim que tudo parou. Foi chegando aos poucos. Tanta coisa pra se preocupar. Familiares, amigos, o mundo inteiro. Ela ficou maturando. Até que um dia assistíamos a um filme quando, numa cena rápida com diversas imagens de Buenos Aires, surgiu o La Bombonera lotado, num jogo entre River Plate e Boca Juniors. A imagem não ficou nem cinco segundos na tela, e não saiu mais da minha cabeça. Senti vontade de me aglomerar, de gritar gol e de cantar.

Comecei a assistir partidas antigas. Com isso, descobri um site chamado footballia.net, que exibe os jogos de todas as Copas do Mundo. Finalmente pude ver jogar os craques que passei toda a vida apenas imaginando. É interessante acompanhar a transformação do jogo através do tempo, mas por ser futebol, sempre falta alguma coisa. Emoção. Falta a incerteza do placar. A expectativa da virada.

Em diversos jornais pelo mundo, governantes falam sobre a volta ao “novo normal”. Sem shows. Grandes aglomerações. Praias ou parques lotados. O “novo normal” é na verdade uma senha pra que as pessoas voltem a produzir com cuidado.

O futebol, esporte de contato físico em campo e multidões em volta, é justamente o oposto do conceito de “novo normal”. E seria totalmente ignorado no plano de retomada, se não fosse por um detalhe: o jogo de bola é uma das atividades mais rentáveis em todo o planeta. E agora, o que fazer? Jogar com portão fechado? Proibir carrinhos, escanteios e faltas laterais?

Mesmo que sinta saudade, não tenho pressa pra voltarem com os campeonatos. Estou cada vez mais convencido de que a gênese do esporte é exatamente o oposto do que vivemos nesses tempos de isolamento social, e por isso espero realmente que só marquem o próximo jogo quando tudo o que vivemos agora já estiver se ajeitando no passado. Dessa forma, a primeira partida de futebol pós-pandemia marcaria oficialmente a volta àquilo que entendemos como normalidade. Quero dizer, em termos de alegria, explosão, encontros e rituais.

E que o único novo normal que possa acolher o futebol seja econômico, um sistema mais equilibrado e justo, reavaliado e reestruturado mundo afora pós-pandemia. Descobri na quarentena também o lugar dos sonhos. E é assim que espero pelo dia do próximo jogo.

 

Publicado em 6/5/2020

Mundo grande

 

Com o passar dos dias, com a falta de informação precisa, a internet bombando como nunca, acredito que deixarei a quarentena com muito mais dúvidas do que certezas. Mas no meio de toda a confusão, vi também algumas intuições se concretizarem. Muitas delas sobre meu processo de trabalho.

Com um romance em andamento, a ideia de ficar em quarentena, bem lá no início, quando sabíamos ainda menos do que sabemos agora sobre a pandemia, me pareceu até uma coisa boa. Faltavam dois capítulos pra fechar a primeira parte, finalmente poderia me dedicar integralmente ao livro.

Na primeira semana, produzi consideravelmente menos do que de costume. De início, já acostumado a essas oscilações, não fiquei preocupado. Veio a segunda semana e o rendimento despencou expressivamente. Na terceira semana cheguei a zero. Qualquer coisa era motivo pra adiar o compromisso com meu texto.

Não demorei pra perceber que seria impossível seguir minha rotina de sempre com o mundo de cabeça pra baixo. As notícias sobre o número de mortos em grande escala todos os dias, a desigualdade social definindo o maior grupo de vítimas. Amigos e familiares enfrentando dificuldades financeiras.

Depois dessa conclusão, tentei organizar as coisas dentro de mim antes que pudesse voltar ao trabalho. Foi aí que me dei conta do tanto que dependo do outro pra criar o que quer que seja. De fato, acontece algo de fundamental no encontro. E nem quero dizer que toda vez que saio na rua volto com uma nova história pra contar, quem dera fosse assim. A verdade é que percebi no outro um poderoso disparador até mesmo para os temas que já orbitavam meu universo criativo.

O jeito de falar de cada um, as escolhas de palavras, o ritmo, as discussões e piadas de rua; sinto que tudo isso, de alguma forma, remexe com as nossas sinapses, nos mostrando novas conexões, novas maneiras de enxergar o que acreditávamos conhecer. É no encontro com o outro que nos tornamos indivíduos. Sozinhos, somos o universo inteiro. Bagunça demais pra qualquer tentativa de organização.

A caminho do segundo mês sem sair de casa, sinto que atravesso meu maior deserto criativo até então. Alguns anos atrás, as dificuldades pra escrever eram outras. Desde a pressão pra conseguir um emprego de carteira assinada ao aluguel que vence todo mês, se concentrar na ficção não era uma tarefa fácil. Mas ao contrário do que o isolamento provoca, eu me sentia, de alguma forma, ainda mais motivado a produzir meus trabalhos, agarrado à perspectiva de mudança.

O isolamento é árido. Ficamos com os olhos e ouvidos nas janelas vizinhas, atentos, na espera de que algo aconteça; falamos sobre memes, sobre o passado e o futuro parece tão distante quanto incerto.

Cercado pelas paredes sempre do mesmo apartamento, pressionado contra esse espaço enquanto meu corpo espera pelo horizonte, lembro de “Mundo grande”, um dos meus poemas preferidos na vida, e tenho certeza de que não, “meu coração não é maior que o mundo”. Preciso de todos.

 

Publicado em 28/4/2020

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Rachel Valença, da equipe do IMS

Mais sobre o Programa Convida
Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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