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Graça Graúna (RN)

Indígena potiguara, Graça Graúna (Maria das Graças Ferreira) nasceu em São José do Rio Campestre, RN. Escritora, poeta e crítica literária, é graduada, mestre e doutora em Letras pela UFPE e pós-doutora em Literatura, Educação e Direitos Indígenas pela UMESP. Publicou Canto mestizo (1999), Tessituras da terra (2000), Tear da palavra (2001), Flor da mata (haikais, 2014). Participa de várias antologias poéticas no Brasil e no exterior e é responsável pelo blog Tecido de Vozes.

Ao redor da fogueira

 

Estamos aqui,
apesar dos tempos sombrios.
Aqui estamos
pelo direito de ser
diferente e viver
porque somos iguais
nas diferenças

O tempo desaba!
Mas estamos aqui
do nosso jeito,
imagine há quanto tempo!
Há séculos sobrevivemos
em meio à intromissão
de outros valores

Aqui, estamos!
E apesar da incerteza,
o nosso povo avança
no preparo da chicha
da mandioca e o beiju
no embalo da cantoria
de cigarras e pássaros

Aqui, estamos!
Apesar das injúrias,
do nosso jeito lutamos
para manter o costume
de manejar as maracas
e reconhecer no cocar
a nossa resistência

Aqui, estamos!
Apesar da exclusão,
existimos!
No meio da noite
bem ao redor da fogueira
de luta e glória
muitas histórias ouvimos
Aqui, estamos!
E apesar das perdas,
a luta continua no solo sagrado,
na caça, na pesca,
na crença, na dança
na roda de Toré,
no manejo da Terra, resistimos!

Aqui, estamos!
E apesar dessa atroz agonia
do nosso jeito, existimos
pra recuperar a Terra
e cuidar do plantio
na luta contínua
por um lugar no mundo

Quando a noite é mais pytuna...

 

Os Ancestrais cantam e dançam
pintados com açafrão, jenipapo
e urucum para saudar os parentes
com arco, flecha e maraca
pela noite mais pytuna
o Sol, a Lua e as estrelas
são acolhidos nos sonhos
dos Encantados na festa

Aqui, onde estou
(distante dos parentes)
no mundo em abismo:
pandemia, pandemônio...
ilhas virtuais... onde estou?
Perdida no isolamento
a noite não é a mesma
tão longe, assim, dos parentes

Até quando esse confinamento?
Rogo à força do Encantado
que venha o Sol em meus sonhos
com os ancestrais em festa.
E vem o sonho: a aldeia canta
pra guardar a noite
e dança pra salvar os céus
no ritmo sagrado das maracas

Sonho e a noite se faz pytuna
na epifania das constelações
sobre o tempo da caça e da pesca
do plantio e da colheita
e uma voz de longe nos anima:
“olha pro céu meu amor,
olha como ele está lindo”...
mesclas de sonho e realidade ...

Lá, em Pedra Lavrada, na Paraíba
uma “porção do céu” mais estrelado
vence o tempo e segue
pela noite mais pytuna
...“olha pro céu meu amor”
é Colibri trazendo no voo
o frêmito da primavera
pela noite mais pytuna

Olha! Mira o verão amazônico!
Em noite pytuna a canoa ancestral
e a constelação da Garça
anunciam a fartura de peixe.
O pajé canta pra segurar o céu
e conta que no meio da noite pytuna
o Homem Velho da constelação
saúda os parentes do Sul

e quando o dia é igual à noite
o outono vem no desapego de tudo
como sempre foi e é ainda
pela noite mais pytuna.
Na leitura do céu em tempo de inverno
os pajés contam que a Via Láctea
é a morada dos deuses
pela noite mais pytuna

e que os filhos e filhas da Terra
têm seus parentes celestes
desde sempre à luz da história
pelas noites pytunas.
A vida segue
e a memória em nós
tece a alma da palavra ancestral
no meio da noite mais pytuna

* pytuna = significa noite, na língua Tupi.

Fios do tempo
(quase Haikais)

Manhã de inverno:
cheiro de café torrado
aquece a aldeia

Uma Canoa Encantada:
à sombra do jatobá
o parente espera

Final da tarde
mais um bando de garça
alegrando os céus

Ipês florindo:
louvores indígenas
no pé da serra

Entre rios e matas
distender as asas
no caminho da aldeia

Dorso do tempo:
no cocar resplandecem
mechas de prata

Súbita visão.
Beija-flor no terreiro:
mensageiro, xamã

No meio do lago
um cardume de história
a Canoa consome

Na borra de café
a imagem de andarilhos
por Ameríndia

Seguir a trilha
pelo som da maraca:
a aldeia em festa

Sou de Ameríndia.
Por isso, ando...ando
e nunca é o bastante

Dizia o velho pai
com o vai-e-vem da maré:
água tem memória

Trópico do Colibri:
uma trilha encantada
em Ameríndia

[Livro inédito de Haikais, em busca de Editor], Nordeste do Brasil, 2020.

Publicado em 24/8/2020

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Miguel del Castillo, Paulo Roberto Pires e Rachel Valença, da equipe do IMS

Mais sobre o Programa Convida
Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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