Itamar Vieira Junior (BA)
Baiano de Salvador, é autor da coletânea de contos A oração do carrasco (2017), finalista do Prêmio Jabuti de Literatura. Tem contos traduzidos e publicados em francês, inglês e espanhol. Seu mais recente trabalho é o romance Torto arado, vencedor, em 2018, do Prêmio LeYa.
Sonhos
De repente meu pai chega à porta. Sinto um enorme alívio ao revê-lo, ao constatar que está bem. Alívio também por saber que em casa estaremos protegidos, e com minha mãe cuidaremos uns dos outros. Mas meu pai está silencioso e permanece distante. Eu preciso sair para comprar alimentos. Ando por uma rua deserta e sinto uma incômoda sensação de solidão. O medo me alcança quando vislumbro, ao longe, uma grande marcha de pessoas cobertas de branco da cabeça aos pés, com viseiras transparentes protegendo a face. Andam lentas, quase flutuam, são como os astronautas das imagens históricas da chegada à Lua. Mas quando se aproximam, vejo que carregam macas com pessoas e passam por mim sem hesitar, o que me paralisa e deixa um desconforto.
Desperto com grande desassossego. Meu pai morreu há mais de um ano, e o confinamento não tem me permitido sair de casa, muito menos para observar uma marcha de “astronautas”. Os jornais têm trazido relatos sistemáticos de sonhos manifestados por muitas pessoas durante este período, sonhos que trazem alguma carga de medo relacionada à pandemia. A psicanálise poderia nos dar explicações técnicas, embora subjetivas, sobre eles e de como representam o nosso inconsciente. Mas não precisamos, necessariamente, estar dormindo para dar vazão às nossas inquietações. A memória e a ficção cumprem essa função com muita propriedade.
Atravessar uma calamidade da atual proporção exige uma boa dose de resiliência. Nesse movimento de compreender o que me cerca, retorno à história, olho para o passado para encontrar referências que me guiem por um caminho, se não seguro, de onde ao menos possa retirar coragem, este sentimento valioso cultivado por meus antepassados e que me trouxe até aqui. Em 1918, a tragédia se abateu de forma semelhante sobre o mundo, e me ocupo em imaginar como meus antepassados atravessaram aqueles meses terríveis, com corpos lançados nas ruas, a população temerosa e sem respostas para o que se abatia sobre suas vidas. Que sentimentos teriam guardado? Que lições permaneceram para suas vidas? Será que foi possível, mesmo com o distanciamento, manter algum laço de cooperação e solidariedade com os mais necessitados?
Nestes dias também tenho pensado em meus avós, que viveram algo semelhante, uma história que marcou profundamente a nossa família e reverberou num constante medo de que pudesse se repetir. Nos idos de 1972 e anos subsequentes houve uma epidemia de meningite no Brasil, na qual eles perderam uma filha de dois anos. Lembro-me dos relatos de sonhos regulares de minha avó, da inevitável culpa que sentia, mesmo passados quarenta anos. Da mesma forma, recordo a história cochichada em segredo: no momento após a morte, meu avô, tomado de ira, perdeu a fé e destruiu com um cabo de vassoura o altar católico de casa. Anos depois, numa exposição sobre a ditadura militar, li relatos da omissão do regime ao silenciar e negar a epidemia, o que agravou sobremaneira uma tragédia que poderia ser evitada.
Os meus sonhos, os sonhos de minha avó, os dos nossos antepassados, que imagino com boa dose de ficção, foram atravessados por sentimentos de medo e culpa. Mas a doença, esse inimigo desrespeitoso que nos invade a vida, também foi combatida com certa dose de destemor, compaixão e resignação. Foi enfrentada com a altivez e o orgulho dos que desejavam viver. Foi assim que atravessamos o tempo, e é esta constatação que me impele a prosseguir.
Publicado em 6/5/2020
Um mundo que já não existe
Ontem, quando anoiteceu, me aproximei da janela para encontrar novamente o escuro do dia, e desta vez vi uma pomba acuada sobre a calçada, encolhida junto ao muro. Assim como eu a observava, percebi que em pequenos intervalos ela fazia o mesmo, me encarando com uma incômoda curiosidade.
Olhar para a pomba me fez pensar que se pudéssemos nos comunicar com a mesma linguagem, expressando sentimentos de forma convencionada, talvez ela estivesse se perguntando por que nesses dias o mundo que a cerca tem estado mais quieto. Por que nós, animais ruidosos e dominadores, afeitos a subjugar os diferentes, parecemos assustados nas nossas gaiolas. Nós, que só não as aprisionamos por puro desprezo: não cantam, não têm penas coloridas, não trabalham – embora antes da revolução tecnológica elas nos tenham sido úteis no envio de mensagens – e transmitem “doenças”. E ela me devolveu esse olhar, com uma expressão de admirável surpresa, como que querendo compreender o que nos fez trocar a liberdade dos nossos voos arrogantes pela prisão que pode ser uma casa.
A literatura já nos trouxe inúmeros exemplos de encontros insólitos, e se tivesse que recordar apenas um ficaria com A pomba, do escritor Patrick Süskind. No livro, Jonathan Noel, funcionário de um banco que segue uma rotina milimetricamente planejada, talvez para sentir-se protegido de infortúnios, sai de seu pequeno apartamento em direção ao trabalho e encontra uma pomba no corredor. Incapaz de prosseguir a sua rotina, talvez por medo do animal ou do que mais lhe possa acontecer ao transpor aquela ruptura, Noel mergulhará num drama existencial. O que está em jogo nessa história aparentemente banal não é a surpresa que o mundo pode nos trazer, mas a ilusão de que somos imunes a colapsos pela descontinuidade do nosso cotidiano.
Estar entre quatro paredes pode nos dar a falsa impressão de que a nossa pouca mobilidade nestes tempos nos torna prisioneiros. A visão da pomba repousando na calçada, longe do seu recanto habitual, com relativa paz e sem medo de que os passantes, que já não há, a enxotem, me transmitiu a certeza de que estes são outros tempos. E embora não me sinta numa prisão, penso que esta pode ser uma questão de perspectiva. Aprisionados pelas inumeráveis sensações que os nossos tempos nos proporcionam, parecemos não saber o que fazer quando, de fato, encontramos um pouco de liberdade. A liberdade de não nos movimentar, de não viajar, de não consumir desenfreadamente, de ver o tempo se estender sem que tenhamos que atender aos compromissos que nos são impostos. A liberdade de estar consigo, atento aos próprios pensamentos, ao mundo que nos circunda. O que para uns pode ser a liberdade, para outros pode ser o encarceramento.
Nestes dias posso notar o inquieto e constante rumor de uma natureza que não descansa. Uma miríade de seres atraída pelo calor, pela luz, por menos ruídos, mostra que também existe e é capaz de continuar com sua jornada independente do que nos aconteça. Em contraponto, vejo uma humanidade atordoada, apegada à ilusão de um mundo que já não existe.
Publicado em 28/4/2020
Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Rachel Valença, da equipe do IMS