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Jarid Arraes (CE)

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado Redemoinho em dia quente, vencedor do APCA de Literatura na categoria Contos. Também escreveu As lendas de Dandara, com edição francesa Dandara et les esclaves libres, Um buraco com meu nome e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. Tem mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita para Mulheres.

Olhos aprumados

Eu tinha certeza do olhar de Zarôio. Apesar dos óculos pesados, das lentes grossas que só a peste, de um olho desviado na bila do outro. Apesar do escuro da calçada dividindo a luz de um único poste pra três quarteirões. Apesar disso tudo, quando eu botava a cadeira pra fora, era certeza.

Todo mundo me falava pra não dar moral. Era feio, era pobre, era BV e, pra lascar logo o resto, era zarôio. Me dava um pinicado nas canelas ouvir essas coisas. Eu me importava de dois jeitos que se batem. O jeito de quem não quer ouvir o povo frescando, tirando onda da gente, aquele jeito de quem tira primeiro o próprio rabo do caminho, mas também aquele jeito de querer servir de muro. Pegar o bichinho pela mão, falar senta aí logo, senta direito, não assim na beira da calçada, não assim com os pés quase dentro do esgoto, senta aqui na outra cadeira e não fica com vergonha. Olha pra mim. Eu sei pra que lado seu olho virou. Eu devolvo a olhada.

Mas nunca.

A rua foi toda que se meteu. Se eu não era bonita pra Marcelo, nem pra Júlio, nem pra Cacá, talvez só bonita pra Ramon, de uma hora pra outra eu era bonita demais pra Zarôio. Era magro, era mal vestido, era sem jeito e, pra lascar mais ainda, era zarôio. O povo mangava e dizia que era um no peixe e outro no gato, que não tinha como conversar com ele e saber se ele prestava atenção, que faltava até paciência pra muito leriado, porque era um esforço conversar com ele e tinha gente que sentia até constrangimento por não saber pra qual dos dois olhos era certo de olhar. Bem por isso que o bichinho era quieto, porque com os olhos é que se ignora.

Se você tirasse a coisa do grau da feitura que era medida pelo povo e do tanto de dinheiro, não tinha nada que separasse a gente tanto assim. Ele era uma das poucas pessoas que eu conhecia e que tinha um Super Nintendo, por isso a gente marcava de jogar quase todo dia de tarde, depois que mainha comia meu juízo até eu terminar a tarefa da escola. Parece que ele ficava lá no chão, com as pernas esticadas evitando a água suja, só de butuca pra ouvir o trinco do portão. Olhava pra mim, e pra nosso encontro de quase todo dia, com a mesma surpresa. E o mesmo alívio. Entrava mudo, a cabeça baixa, segurando a sacola com tudo dentro e dizendo opa Dona Meire.

Eu tinha uma televisão de quatorze polegadas no meu quarto e a gente podia fechar a porta, que Mainha não gostava de barulho de jogo e nem de conversa alta, e ele até que podia sentar mais perto de mim, podia relar o braço, podia me encarar por quase um minuto e eu com certeza teria a atitude de beijar primeiro. Ou podia me beijar de surpresa. Ou chegando de pouquinho. Podia pedir permissão. Poder, podia.

Mas nunca.

A gente jogava sempre as mesmas coisas, do mesmo jeito. Depois terminava a tarde com cada um comendo um tomate partido no meio, um monte de sal, e a boca que era água pura.

Eu achava Zarôio bonito. Ter os olhos mexidos não quer dizer confusão. A pele era marrom dourada um pouco de laranja os cotovelos meio cinzas, a boca era carnuda, o cabelo cacheado meio liso que nem de menino. Nunca apareceu sem ter passado perfume de alfazema, sem chiclete na boca, sem chinela limpa. Eu falava pra ele não dar moral pro povo, que era só zuada. Esperei foi muito que ele entendesse e fizesse qualquer movimento.

Mas nunca.

Coisado esse negócio de uma hora ser feia demais e outra não ser feia tanto assim, não tanto. Eu sabia que ele gostava de mim, mas também não sabia. Porque outras vezes tirei certeza não sei de onde e levei foi toco. Contei muitos que só viram de mim a feiura. Não queria ser feia dentro dos dois olhos dele. Eu precisava que ele demonstrasse melhor. Mais do que se arrumar todo, mais do que ter vergonha de sentar do meu lado, mais do que esperar meu trinco aberto todo dia e toda noite. Mais do que dividir o video game comigo. Sendo que ele que era pobre. Nem era. Minha casa que parecia ser muito grande.

Talvez se eu tivesse ido na casa dele também, se eu tivesse dito opa Dona Cicinha pra mãe dele, se eu tivesse entrado no quarto dele e deixado a porta se fechar, e se eu tivesse me relado nele só um pouquinho. Talvez se eu tivesse olhado pra ele bem muito, bem pra ele entender que eu sabia qual era o ângulo. Aí quem sabe Zarôio seria tanta certeza quanto era certo.

Mas nunca.

Veio tempo e foi tempo. Nada nunca mudou. Ele só ficou mais alto e eu com mais peito. Ele deixou o cabelo crescer até o meio do pescoço e arrumou um trabalho de ajudante numa mercearia. Comprou um Playstation. Foi quase todo dia com uma pilha de jogo pirateado lá pra casa. Tudo em inglês, a gente sem entender é nada. Jogava na sorte, tinha jogo que não dava de jeito nenhum e aí se repetia a mesma coisa, com os mesmos botões. Eu botava Engenheiros do Hawaii pra tocar, um CD também pirateado, e ele cantava pra ser sincero não espero de você mais do que educação beijos sem paixão crimes sem castigo apertos de mão apenas bons amigos, como se aquela letra tivesse alguma coisa a ver com a gente. Eu sabia que era a intenção, porque eu via bem certinha a linha do olho esquerdo dele olhando pro meu olho esquerdo, mesmo que aquele fosse o olho mais confuso da minha cara.

Não sei que dia ele começou a desistir, mas eu dei permissão pro tempo deixar pra lá. Ficava triste quando entrava em casa, ligava o som no quarto e imaginava que poderia ter passado a mão no cabelo cacheado meio liso que ele deixou crescer. Pensava se era melhor beijar de óculos ou sem. Quem tiraria primeiro.

Foi passando o tempo de jogar, o tempo de descobrir música, o tempo de reparar que o número dos dias tinha mudado nosso corpo. Hoje eu só lembro de uma vez em que sentei na calçada, desviando meus pés do esgosto, porque tinha ficado trancada pra fora. Ele vinha lá de baixo com uma sacola cheia de manga verde. Antes de passar de vez por mim, parou e perguntou oxe, tá querendo ficar aqui de novo? E eu respondi que não queria lá fora, que sempre quero lá dentro.

Acho que ele sorriu, quero lembrar que sorriu, e os dois olhos se encontraram aprumados com os meus.

Mais nunca.

Publicado em 17/11/20

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Elizama Almeida, Daniel Pellizzari, Miguel del Castillo e Rachel Valença, da equipe do IMS

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Artistas e coletivos convidados pelo IMS desenvolvem projetos durante a quarentena. Conheça os participantes:

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