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José Falero (RS)

José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo José Falero em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019), e cronista na revista digital Parêntese.

O episódio do bodoque

 

Todos os meninos do beco eram intrépidos por natureza — exceto o pequeno Dô.

Ouvidos sempre atentos, olhos sempre desconfiados, postura sempre pronta a dar meia-volta, pernas sempre dispostas a correr, assim aquele pinguinho de gente guardava, desde seus primeiros verões, uma impressionante relação de respeito com os perigos da vida. Via-os sucederem-se aqui e ali como quem observa fogos de artifício: intrigado, seduzido, por vezes mesmo fascinado, mas grato pela distância segura entre eles e seu nariz. Claro que não faltaram amiguinhos para enredá-lo na alcunha de “bunda mole”. Crianças costumam ser cruéis. Contudo, ainda que a cada chacota Dô sentisse vontade de comportar-se como os outros meninos do beco, sua determinação nesse sentido jamais vencia a queda de braço contra seus instintos. Frustração. Frustração que levava a mais chacotas. Mais chacotas que levavam a desejo redobrado de imitar os amiguinhos. Desejo redobrado de imitar os amiguinhos que levava a maior frustração. Bem, desse círculo vicioso para o desenvolvimento de problemas de autoestima ao longo da vida era um pulo. Um pulo que felizmente nunca seria dado. Porque, para a sorte do pequeno, de vez em quando era ele quem ria por último, justamente graças a seus cuidados, e então reforçava, de maneira gloriosa e retumbante, a satisfação com o próprio modo de ser e estar no mundo.

Foi o que aconteceu no episódio do bodoque, por exemplo.

Para início de conversa, Dô não era lá muito fã de bodoques, pois serviam principalmente para caçar passarinhos, e, por mais que se esforçasse, não conseguia compreender a vantagem de abatê-los. Na verdade, abatê-los, expulsá-los da existência, impedi-los de cruzar o azul do céu em voos certeiros, condená-los a jamais cantar ao nascer do sol, tudo isso parecia-lhe mesmo uma estupidez completa, um desperdício injustificável. Desnecessário comentar que não refletia com estes meus termos de marmanjo afetado; aquilo que lhe ia em algum lugar entre o cérebro e as tripas talvez nem fosse propriamente uma reflexão; era antes um sentimento, mais ou menos como o que decerto experimentaria caso testemunhasse alguém jogando um sorvete no lixo, em pleno verão.

Não gostava de bodoques, portanto. Se possuía um — e se, mais do que isso, fazia uso dele quando convidado a caçar passarinhos —, quem, neste mundo de tradições, estaria em posição moral de recriminá-lo? Naquela tarde, quando Lu o chamou para ir praticar a estupidez completa, para ir promover o desperdício injustificável, não foi senão a espada das tradições o que Dô sentiu atravessar-lhe a alma, enquanto dava de mão no bendito bodoque e saía à rua.

O único prazer que conseguia extrair das caçadas era o de ver os amiguinhos atribuírem seu fracasso absoluto ao azar ou à falta de mira, sem jamais suspeitarem que, na verdade, errava os disparos todos de propósito. E Lu, o melhor caçador entre os meninos do beco, talvez fosse o que tivesse menores chances de descobrir seu segredo, já que lhe sobrava em pontaria justamente o que lhe faltava em perspicácia. Não só acreditava piamente na falta de habilidade de Dô, como precipitava-se a concluir que aquele devia ser um mal de família.

— A fruta nunca cai longe do pé.

Era o que dizia cada vez que uma pedra disparada pelo companheiro acertava apenas as folhas das árvores, em alusão a uma fofoca antiga, segundo a qual o pai de Dô, poucos instantes antes de morrer em um confronto com a polícia, teria errado seis tiros a pouca distância do policial que alvejava.

— A fruta nunca cai longe do pé.

De tanto Lu repetir o ditado, referindo-se, ainda que de maneira indireta, a uma história que envolvia polícia, aconteceu justamente que uma viatura policial apareceu, como se invocada por ritual satânico. Os ouvidos sempre atentos de Dô não o decepcionaram: foi ao captar o som de freio de mão sendo puxado, quase imperceptível àquela distância, que o pequeno decidiu lançar seus olhos desconfiados para o outro lado da praça, vendo, então, o brasão maligno, o símbolo do horror, estampado na lataria. Na mesma hora, atirou seu bodoque o mais longe que pôde e empenhou-se em recomendar, com sussurros e mímicas, que Lu fizesse o mesmo. Este, porém, a princípio não entendeu nada, e mesmo depois de entender, quando os policiais já adentravam a praça, achou que não havia motivo para imitar o amigo; em vez disso, o que fez foi caçoar dele, com um estalo de língua uma pequena risada.

— Bunda mole! Tá vendo como a fruta nunca cai longe do pé?

Entretanto, não foram necessários mais do que uns poucos segundos para que Lu, mesmo com sua pouca perspicácia, compreendesse que estava em maus lençóis.

— E esse bodoque, seu merdinha? — rosnou sem rodeios o policial que vinha à frente. Ato contínuo, olhou dentro dos olhos de Dô. — E tu? Hem? Cadê teu bodoque?

— Não tenho bodoque, não, senhor, não gosto de bodoque.

— Não?

O pequeno tornou a negar, desta vez limitando-se a sacudir a cabeça, sem dizer palavra.

— Então vai, vai, anda, anda, te some daqui!

Dô obedeceu imediatamente, saindo em disparada. Mas, antes de afastar-se muito, teve tempo de ouvir, às suas costas, o tom particularmente venenoso que o policial adotou para voltar a dirigir-se a Lu:

— Não, não, tu não vai a lugar nenhum! Tu fica aqui, que agora tu aprender a não sair estourando lâmpada de poste por aí. E não adianta chorar…

Quando Dô chegou ao outro extremo da praça, já esbaforido, atreveu-se a olhar para trás, por cima do ombro, antes de virar a esquina e seguir correndo para casa. O que viu, de relance, foi o policial segurando Lu no alto, pelo tornozelo, de cabeça para baixo, ameaçando soltá-lo dentro da vala de esgoto, enquanto o menino chorava a não mais poder. Apesar de assustado, Dô logo pegou-se aos risos, sussurrando assim para o vento, enquanto corria:

— Quem é o bunda mole agora?

Na noite daquele mesmo dia, leitor, lhe digo que esse pequeno sonhou com seu pai. E desta vez o sonho não amenizou apenas a saudade, mas também um outro sentimento, menos definido, embora igualmente amargo. Sorrindo, o homem acariciou o rosto da criança, encarando-a cheio de orgulho.

— Não te preocupa, meu filho. O pai também errava os tiros de propósito.

Publicado em 4/11/20

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Elizama Almeida, Daniel Pellizzari, Miguel del Castillo e Rachel Valença, da equipe do IMS

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