Leonardo Fróes (RJ)
Poeta e tradutor, vive em Petrópolis, RJ, desde o começo da década de 1970. Antes, morou no Rio, em Nova York, Paris e Berlim. Foi editor, jornalista e enciclopedista. Entre seus livros mais recentes estão: Assim (2019), Trilha (2015), Sibilitz (2015), Chinês com sono (2005) e Contos orientais (2003).
Etapas
Traduzido de “Stufen”, de Hermann Hesse (1877-1962)
Tal qual toda flor murcha e toda juventude
Em velhice decai, cada etapa da vida
Floresce, como a sabedoria e a virtude,
No seu tempo preciso e nunca se eterniza.
Quando a vida o convoca, deve o coração
Estar aberto para um adeus e um recomeço,
Dando-se inteiro, com coragem, sem tristeza,
A outra ligação que então se manifeste.
Em todo início existe uma fascinação
Que nos protege e ampara a nova caminhada.
De lugar em lugar convém irmos alegres,
Sem apego a um qualquer, como se fosse pátria.
O espírito do mundo impõe vencer etapas,
Não quer atar nem restringir, mas elevar.
A frouxidão nos ameaça mal entramos
Na estreiteza dos hábitos do comodismo.
Só quem se apronta para a partida, a viagem,
Pode arrancar-se da rotina que entorpece.
Talvez até a hora da morte ainda possa
Levar-nos jovens a cruzar novos espaços.
O chamado da vida para nós não finda...
Saúde pois, meu coração, e às despedidas!
Publicado em 3/9/20
Tambores da madrugada
Vem a manhã que apaga os monstros
que andavam soltos pela casa.
O coração se aquieta, exausto de temer,
à luz que banha o corpo à janela.
O vento leve arrasta cismas e sombras
que faziam do quarto um campo de batalha.
Que teme o coração na hora incerta
em que o corpo desperta, e é madrugada?
Serão figurações em desalinho
que a memória retém da infância morta
para acioná-lo a travar seu vão combate?
Serão talvez doenças fictícias
ou sintomas reais que a mente inventa
quando é induzida a pensar na escuridão?
Algum remorso irrompe do passado,
alguma farpa fere o peito,
há algum espinho atravessado na carne?
Que sabe o coração quando ele acorda
aos pulos, como se a morte o aliciasse
para ouvir seus tambores? Como se nada
de interessante houvesse mais no mundo,
além de discutir consigo mesmo?
(Quem sabe o coração só desanima
ante tantos cruéis pressentimentos
e o dissabor das mágoas obscuras
que a noite lhe enfiou pela goela?)
Nada ele sabe, o tolo coração disparado,
senão que às portas da manhã
seu horror terminou pausadamente.
Passado o aperto, a brisa, por contraste,
o acaricia, restaura, consola e fortalece
para enfrentar novos testes de agonia,
iguais desabamentos de estrutura
que outras noites lhe tragam, qualquer dia.
Publicado em 24/8/20
Travessia em barco bêbado
Era o barco de um bêbado na tempestade
o táxi alucinado em que eu ia
aos trambolhões pelas vias alagadas,
sinuosas e escuras da periferia.
Em vão pedi clemência, em vão roguei
ao barbudinho ás do volante
para aplacar o clamor do seu veículo
que afundava nas poças e pulava em calombos.
Quanto mais eu pedia, mais ele zombava
do meu temor e acelerava. Um pé de chumbo.
Testando as armas da delicadeza, eu disse:
“Não tenho pressa, amigo, é perigoso
correr tanto assim em chuva tão pesada”.
Que nada! O cara nem me olhou, só respondeu:
“Perigoso é nascer. Não vou bater nem te afogar
na lama. Já tem gente demais morrendo aí”.
Lembrei da frase dos jagunços de Rosa,
segundo a qual o perigoso é viver,
e me calei estoicamente pensando
como há ciladas difíceis de enfrentar.
O maluquinho sorriu vitorioso
quando enfim me deixou em casa. E fui olhar
no meu velho Montaigne a lição curta
(oriunda talvez de original latino)
em que ele uniu a frase do piloto
celerado do barco que me trouxe
à fala saborosa do sertão dos jagunços:
Viver é aprender a morrer.
Publicado em 24/8/20
Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Miguel del Castillo, Paulo Roberto Pires e Rachel Valença, da equipe do IMS