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Marilene Felinto (PE)

Nasceu em Recife, em 1957, e foi criada em São Paulo. Formada em Letras pela USP, é escritora de ficção vencedora do Prêmio Jabuti de Revelação de Autor (1983), pelo romance As mulheres de Tijucopapo, já na 4ª edição e traduzido em quatro idiomas. Tem diversas outras publicações entre romances, contos e ensaios. É colunista da Folha de S. Paulo e foi autora convidada da Festa Literária Internacional de Paraty 2019.

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Formiga

 

Sentadas insuspeitadamente à mesa do café da manhã, foi quando a jovem de poucos anos perguntou à senhora:

– Tu come tanajura?

A senhora, quase surpresa com a pergunta em sotaque e conteúdo antigo, que vinha dos confins de seus tempos e da terra onde nascera, respondeu, com um quase sorriso:

– Adoro... Quer dizer, adorava. Mas é que aqui não tem.

– Tem não, né?

– Não.

Um meio silêncio de identificação, de cumplicidade conterrânea, natural de... (do Estado e da cidade onde tinham nascido: a senhora, antigamente; a moça, havia pouco tempo e que vivia lá desde sempre).

– Vocês ainda pegam na rua, as tanajuras? – A senhora perguntou, já trazendo à memória a cena viva de quando, menina, saía às ruas de terra do bairro, com familiares e vizinhos, à cata de tanajuras.

– Na cidade, não pega não – A jovem respondeu, algo distante. – É mais no interior que o povo pega.

– No Alto do Moura?

– É.

Quando era, hein? Era quando? Depois das chuvas de junho, de julho? Ou era no verão? A senhora não se lembrava exatamente. Mas sabia que era sempre de tarde, fim do dia (ou era depois da chuva?) – disso tinha alguma lembrança, porque o céu era sempre nublado naquele período do ano... (refez na mente a imagem do céu escuro, de quase noite). Estaria certa? E havia um cheiro de chuva? Como se tivesse chovido pouco antes.
Ou havia sol?

Reconstruiu-se na memória da velha senhora o alarido de crianças e adultos, a gritaria, a correria alegre de gente abatendo com redes finas e pedaços de pano as tanajuras que esvoaçavam baixo, voando e revoando em nuvens, enxames pretos, cheias de asas, sobre as cabeças das pessoas. O chão chegava a pretejar, forrado das formigas abatidas e ainda se remexendo em agonia.

O segundo passo era recolher os insetos tombados, tampá-los dentro de vasilhas e sacos e levar para casa. Por vezes as formigas serviam para aplacar a fome em dias de comida minguada – retirados os ferrões e as asas, torradas na frigideira e passadas na manteiga e na farinha de mandioca, tinham um gosto bom e peculiar.

Ah, aquilo era quase uma alegria... (a senhora quase suspirou, e teve vontade de contar à moça, mas, envergonhada da nostalgia, calou-se). Continuou na rememoração solitária, longínqua, um tanto vexatória diante da atualidade da juventude à mesa.

Agora seu esforço era para se lembrar do gosto exato das tanajuras torradas. Gosto de quê, hein? Onde, afinal, em que esconderijo das papilas gustativas ficavam guardadas as memórias dos sabores? Em que sensibilidade do cérebro da pessoa? Quantos anos fazia que não sentia aquele prazer de mastigar uma tanajura crocante?

A jovem displicentemente tomava seu café, distante das elucubrações da senhora velha. Por que seria que aquela moça tinha perguntado a ela sobre tanajuras? De onde? Em que circunstância a jovem associou a mulher com a formiga? Essa pergunta ocupava de modo muito interessante a mente da velha, voando e revoando sem resposta....

– Em que época é mesmo que se pega tanajura? – A senhora perguntou, retomando a conversa.

– Sei direito não. Acho que é pelo São João.

Pelo São João! Claro! Isso mesmo. Devia ser isso mesmo. – A senhora concordou, quase alegre. São João é exatamente época de chuva também, o inverno daquelas terras onde tinham nascido ela e a moça.

– E como é que vocês pegam tanajura lá? Com rede? Com pano? – A senhora indagou, quase entusiasmada.

– Sei não. Eu mesmo nunca peguei não.

– Ah... – A senhora surpreendeu-se.

– Mainha é que compra... – A moça completou, um tanto alheia –... e às vezes o povo dá, leva lá em casa... E também às vezes mainha congela.

Surpresa, a senhora quase riu de novo... Congela? Nunca tinha ouvido dizer aquilo, que se congelava tanajura... É que na casa dela, da velha senhora, naqueles tempos em que se caçavam e comiam tanajuras para matar a fome, nem geladeira tinha na cozinha.

– Hahahaha... tanay’ura... – A senhora riu, quase sozinha, dizendo na língua original “formiga de comer”, “formiga que se come”, quase como herdeira de um de seus antepassados caçadores tupis, guaranis... o ensinamento ancestral.

Mas a moça respondeu, no mesmo tom:

– Hahahaha... – sem saber por que a senhora tinha rido.

E pouco importava. Eram ambas escuras, quase pretas como as próprias tanajuras. E essa identidade, essa ancestralidade, essa comunidade tinha algo de engraçado.

Em que circunstância teria a moça associado a senhora à formiga? A pergunta continuava esvoaçando no ar. Por que tinha despretensiosamente perguntado, do nada, “tu come tanajura”? Afinal, aquela jovem moça não conhecia a fome que era o passado da velha senhora – portanto, não fora esse o motivo da pergunta. Ora, aquela jovem moça era pura atualidade boa, apenas o hoje – em que não se via escassez, nem penúria nem
vontade intensa! Aquela jovem moça era quase felicidade! (hahaha... a senhora exultou, sozinha, em seus pensamentos).

Descompromissadamente, a jovem levou, então, aos ouvidos, os fones conectados por dois fios no aparelho do telefone móvel.

Um dia antes, a moça tinha perguntado à senhora se não queria por acaso ouvir umas músicas que ela armazenava naquele telefone celular. A senhora hesitou na resposta – pois que às vezes o novo lhe dava preguiça... exigia concentração na coisa nunca vista
nem nunca ouvida, exigia um interesse que de início lhe parecia custoso...

– Outra hora eu quero, sim.

E a senhora queria, sim, com certeza, depois. É que ao longo da vida mantivera a curiosidade nata, a inquietação juvenil dos seus tempos de menina e moça – ela achava interessante mesmo que a vida muitas vezes pairasse assim como uma interrogação sem sentido, esvoaçando aqui e ali em seu pensamento, até que ganhasse alguma forma de resposta.

– Pois eu achei a sua playlist bem diferentona – A jovem interferiu de súbito no silêncio da mesa, retirando os fones do ouvido, rindo –, mas eu gostei!

– Hahaha... a minha “playlist”? – A senhora riu. – Aquela que você ouviu no meu carro?

Ora, entenderam-se também nisso, a jovem e a velha senhora, já que ambas gostavam também de inhame: a moça, muito autoconcentrada, com fome somente de vida; a senhora, cheia de antiquada nostalgia e lembranças dos imorríveis sabores da fome.

A velha senhora olhou bem para a jovem à sua frente: a moça era supernova como uma estrela, ou como uma lua cintilando na noite escura. Era uma superstar aquela moça, ela e seus aplicativos, suas deezer-músicas, suas playlists e suas tanajuras congeladas. A vida era melhor na atualidade, no hoje apenas, sem passado, concluiu a mulher velha, com um quase nó na garganta (de tanta ultrapassada alegria... e de felicidade pela moça-estrela).

Publicado em 4/11/20

Projeto realizado a convite da área de Literatura e acompanhado por Elizama Almeida, Miguel del Castillo e Rachel Valença, da equipe do IMS

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