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Paulo Scott (SP)

Paulo Scott nasceu em Porto Alegre. É autor de seis livros de poemas e seis de prosa; escreve textos de dramaturgia e roteiros, colabora com revistas, jornais e suplementos de cultura; lançou recentemente o romance Marrom e amarelo, e atualmente trabalha na pesquisa para a escrita do romance Rondonópolis.

(Foto de Renato Parada)

Retorno (segunda parte)

 

Estes dias de quarentena têm transportado meu pensamento para a rotina que experimentei ano passado, nos meses de setembro e outubro, quando fui convidado para um programa de residência em escrita literária na China – um projeto patrocinado pela Associação dos Escritores de Xangai, que tem centenas de milhares de associados que a mantêm com sua colaboração financeira mensal, associados que compreendem a importância de programas de intercâmbio cultural entre os seus escritores e escritores de outros países.

Foi, aquela experiência, um complexo processo de imersão. Há muito a registrar, muitos contrastes, muitas surpresas. Houve os passeios que eu fazia sozinho às onze da noite pela extensa (e, naquele horário, vazia) Nanjing Road, cujo final ficava a menos de duzentos metros do meu residence hotel. A Nanjing Road é a via pública com o maior número de shopping centers de toda a cidade (dos muito caros aos populares). Aqueles passeios me fizeram descobrir vitrines, fachadas, outdoors, murais, com rostos de modelos negros, retintos, em uma quantidade que eu não teria visto em uma década passada inteira caminhando, de ponta a ponta, pela Avenida Paulista, todos os dias, mesmo sendo São Paulo a cosmopolita Xangai do Brasil, este país negro, que ainda – apesar desta maravilhosa geração (de jovens pardos, retintos, indígenas) que aprendeu a se impor contra a lógica escravagista branca-europeia estrutural – não consegue se olhar no espelho, de verdade, com medo de se descobrir negro. Há muita coisa naqueles dias.

Há também muita coisa acontecendo aqui em São Paulo nestes dias de isolamento social. Estou ministrando uma oficina online para vinte pessoas incríveis. Falo com meus pais e meu irmão todos os dias – somos muito próximos, mesmo, mas nossas conversas por telefone sempre ficaram entre duas ou três vezes por semana, e nunca os quatro falando ao mesmo tempo, como tem acontecido agora pelo WhatsApp. Tenho aprendido muito com Morgana e me dado conta de que, nesses oito anos de casados, talvez eu não tenha me aberto para aprender com ela o quanto poderia. É maravilhoso constatar o que a outra pessoa sempre tem a te ensinar – e isso é mesmo o lado incrível da intimidade, nos momentos bons e ruins, sempre há uma caixinha, dentro daquela que você imagina ser a última caixinha, esperando para ser aberta. Tenho interagido com amigos que estão enfrentando o confinamento em absoluta solidão, a maioria é composta por escritoras e escritores – tem sido importante combinar nossas aflições, nossas idiossincrasias, nossos humores, sarcasmos, nossas dúvidas, esperanças.

Às vezes me pego pensando nos dias inteiros em que fiquei isolado no meu apartamento em Xangai, lendo os jornais locais, os que eu recebia todos os dias na minha porta, os livros de autores chineses que ganhei, pensando, estudando, fazendo anotações. Estranho explicar o prazer e a sensação de invisibilidade em relação ao resto do mundo que eu senti naqueles dias tão diferentes destes de agora. Havia, lá embaixo, a dezoito andares de onde eu estava, uma realidade única a ser desbravada, ainda assim eu estava muito agradecido pela oportunidade de poder ficar no meu apartamento, lendo, pensando, anotando.

Daqui a um tempo, ainda não se sabe quando, haverá uma rotina única a ser desbravada por cada uma, cada um, de nós. Sei que nossas anotações, incluídas as mentais, terão diferentes importâncias. Torço para que elas – nosso verdadeiro parar para se olhar no espelho – façam sentido (depois de todo esse novo e inédito estresse coletivo) e nos ajudem, de verdade, na construção de uma realidade melhor.

 

Publicado em 6/5/20

Retorno (primeira parte)

 

Sou leitor de poesia desde os doze anos de idade. Da época dos livros retirados das estantes da biblioteca do colégio, como parte da estratégia para me manter invisível e esconder a minha timidez durante os intervalos das aulas, até a atual urgência – essa iniciada com a idade adulta e que, de tempos em tempos, me faz entrar em livrarias, de preferência das que ainda mantêm suas portas para as calçadas, e, depois de montar uma pilha de livros, passar duas ou três horas, em um canto onde não atrapalhe a circulação dos clientes e funcionários, lendo os poemas e escolhendo que dois ou três livros adquirir –, venho preservando uma proximidade vital em relação a livros de poesia.

Foi o encanto pela leitura que me levou à escrita de poesia – e minha escrita foi se moldando como uma forma de leitura, um modo que descobri de me aproximar do caos linguístico, estrutural e narrativo presente na escrita das poetas e dos poetas que passei a amar.

Meus primeiros poemas foram poemas de amor, formas de entender o que as pessoas mais experientes chamavam de amor, mas foram também busca, ingênua e desesperada, de um guri da periferia de Porto Alegre, por um tipo de noção – um tipo de conhecimento sensorial, que eu não encontrava nos livros de prosa, de História, de Geografia, de Ciência em geral –, por autoconhecimento, por autoafirmação, talvez. Com meus rabiscos eu me sentia em sintonia com os meus ídolos do cinema, do teatro, da música.

Nessa jornada, houve um período de ruptura, um período que durou os dois anos em que deixei de ler e escrever poesia, os anos de créditos do mestrado que fiz na Universidade do Rio Grande do Sul na década de 1990. Eu me obriguei a parar de escrever, de ler poesia, porque achei que precisava me concentrar na vida prática, ser mais ambicioso quanto ao meu futuro profissional. Passei a encarar a poesia como uma espécie de distúrbio que me atrapalharia, que me impediria de alcançar os idealizados patamares de excelência que um mestrando de vinte e tantos anos poderia alcançar. Não deu certo. No final do segundo ano, eu me dei conta do quanto estava infeliz. Estava ficando doente por negar algo que era tão importante na minha vida. Voltei a ler poesia.

Nestes dias de isolamento social aqui em São Paulo, cidade para a qual eu e Morgana nos mudamos no final de julho do ano passado, depois de oito anos de Rio de Janeiro e três anos de Garopaba, cidadezinha no litoral de Santa Catarina, retomei a escrita regular de poemas, o que não fazia desde o final de 2018.

São poemas que dialogam com os sentimentos e leituras destes dias de confinamento, são um modo de eu me conectar a este novo mundo que está nascendo – um mundo no qual a maneira de ler já não será a mesma e a maneira de escrever também não. São, a maior parte deles, poemas com duas estrofes de seis versos cada, nunca ultrapassando 280 caracteres. Sim, tenho postado alguns deles na rede social menos poética de todas: o Twitter.

Para ser sincero, não sei muito bem o que significam essas escolhas, da estrutura formal e das postagens, e não faço ideia do que teremos pela frente. Muita coisa deixará de ser tradição, muita coisa mudará de sentido. Uma enxurrada de novos modos, de novas leitura, de novas escritas, de uma nova linguagem, é o que, imagino, temos pela frente.

Tenho sorte de estar próximo dos meus livros de poesia – eles ficam em estantes de aço muito parecidas com as estantes de aço da biblioteca do colégio onde estudei –, tenho sorte de poder lê-los e, nas madrugadas aqui em São Paulo, apesar deste tudo atual, às vezes, me alegrar.

 

Publicado em 29/4/20

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