Exposição Entre nós: 10 anos da Bolsa ZUM/IMS
Trëma (São Paulo, SP, 2013)
Memento, 2016
Fotografias impressas em 2023 em pigmento mineral sobre papel de algodão.
“Memento” é tudo aquilo que nos faz lembrar de algo, que dispara uma recordação. Mobilizados pelas novas levas de imigração que chegavam ao Brasil nos anos 2010, o coletivo visitou centros de acolhimentos de imigrantes em São Paulo e entrevistou pessoas de diferentes nacionalidades. Muitos vinham ao país em busca de um nova vida, fugindo de traumas pessoais e guerra civis. Foi assim que conheceram o colombiano Danny Vásquez, e angolana Theresa Senga, com quem trabalharam neste projeto. Impressionados com as histórias pessoais, viajaram para para a Colômbia e o Congo (lugar em que Senga viveu desde cedo) com o objetivo de reconstituir as memórias de ambos.
Vásquez e Senga chegaram ao território brasileiro na metade dos anos 2010, década em que o número de imigrantes praticamente dobrou. À medida que a economia crescia e eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas chamavam a atenção, o Brasil registrava um aumento significativo de pessoas vindas de países americanos, como Haiti e Bolívia, ou mais distantes, como Senegal e Síria, muitas vezes fugindo de conflitos armados e outras situações violentas.
Em Memento, as histórias narradas são tomadas como indícios para a construção de uma narrativa visual. A experiência dá forma e revela aspectos do inconsciente e das relações de Thereza Senga e Danny Vásquez com seus amigos e familiares, suas comidas preferidas, objetos e lugares.
(Ângelo Manjabosco) Bolsa ZUM/IMS 2015
Depoimento
Transcrição do depoimento
Eu sou Gabo Morales, e, junto com o Filipe Redondo, nós somos o coletivo Trëma.
Nesta exposição, você está vendo um projeto nosso chamado Memento, que foi produzido em 2015. Para entender um pouco sobre esse trabalho, imagine que uma pessoa convida você a contar em detalhes como foi a sua vida até hoje. Depois de juntar centenas de anotações sobre suas lembranças, ela usa cada uma delas como inspiração para compor uma ópera, um rap, ou uma canção. Memento é um projeto sobre essa ideia, mas, ao invés de sons, criou imagens. Juntas, elas formam uma coleção de memórias de dois estrangeiros: a congolesa Teresa Esamba Senga e o colombiano Daniel Alberto Pérez Vázquez. Em comum, eles tinham apenas o fato de que haviam acabado de chegar ao Brasil. Nesse trabalho, as lembranças deles são representadas por fotografias que foram pensadas, imaginadas e criadas a partir de desenhos de horas de entrevistas com eles. São imagens que evocam objetos, pessoas, lugares e experiências do passado de cada um. Para produzir esse inventário, nós fomos até os países de origem de cada emigrado em busca principalmente das texturas e da fidelidade que apenas aquele território poderia exprimir. É como se na sua canção a gente buscasse um timbre que representa o território onde suas memórias foram formadas. É importante lembrar que, mesmo buscando fidelidade, diante da complexidade de cada ser humano, tanto a memória quanto a arte fotográfica são cronicamente inconsistentes e incompletas. Esse trabalho não tem qualquer anseio de esconder esse fato. Não é uma biografia. É quase impossível distinguir uma memória de uma projeção, por isso a gente não tenta fazer essa distinção aqui. Se um relato era verdadeiro ou falso, é irrelevante: o importante é que ele foi feito. Memento parte da ideia de que a memória e a fotografia se complementam, não na cópia fiel do real, mas na nuance, no subtexto: elas têm, cada uma do seu jeito, um modo de dizer mais do que parece. Além disso, o trabalho busca encontrar, nas memórias de dois estrangeiros pisando pela primeira vez em terras brasileiras, as emoções, as imagens, os contextos que possam ser similares a de quem viveu aqui nesse país a vida inteira.
Bom, agora a gente vai falar um pouco sobre a obra em si. O trabalho é formado por dois painéis. Em cada um deles, centralizado, está o retrato de um imigrante, e, em sua volta, como se formando uma nuvem, temos as imagens que representam suas memórias. Cada painel inclui ainda um texto sobre cada personagem do projeto. O tom aqui é enciclopédico: a gente evita que a nossa interpretação mais livre das memórias venha aqui invadir essa mídia, porque ela deve servir em oposição a todo o resto como um respiro para o espectador e ouvinte.
Que tal falarmos um pouco das imagens de volta do retrato do Danny? Ao todo, são 26 fotografias de variados formatos. Temos uma bananeira envolta em uma névoa amarela, a vista de uma cidade com um campo de futebol, um túnel, um rio, uma metralhadora, há um homem estirado no chão com uma roupa de soldado. Em uma das imagens, uma criança está debaixo da cama: ela olha para a lente com um olhar que parece assustado. Noutra, um ambiente hospitalar. Em uma UTI neonatal, um recém-nascido dorme sob luz ultravioleta. A foto de uma mulher de sutiã branco está logo ao lado do [?] de um sorvete. Temos ainda o fac-símile de um cartão com várias anotações manuscritas. O retrato de duas crianças, o rosto de uma delas já totalmente escondido pelo degaste do papel, fica logo embaixo. Em uma outra foto, quatro objetos estão dispostos sobre uma mesa forrada com um lençol branco: um sapato, uma manivela, uma tesoura, uma faca. Que memória será que cada uma delas representa?
Bom, agora vamos visitar também o painel da Teresa Essamba Senga. São 25 imagens. Homens conversam em volta de uma mesa, uma cidade vista do alto de dois ângulos diferentes. Um ônibus atravessa uma ponte. Um terno verde pendurado no cabide. Um rádio de pilha sobre o fundo amarelo de estúdio. Logo abaixo, uma televisão antiga desligada, e, no que parece ser uma série dentro da série, temos diferentes alimentos fotografados de um ângulo perpendicular. À esquerda dessa série, um grupo de pessoas sentadas no salão de uma igreja. À direita, dezenas de curiosos em volta de um carro. Em uma das fotos, uma pessoa posa para um retrato sentada em uma cadeira de plástico azul. Seu rosto não está exatamente escondido, mas ainda assim parece muito difícil discernir suas feições. Abaixo o retrato com fundo vermelho de duas estátuas. Há ainda um sapato no rescaldo de um incêndio, a fachada de uma casa, um quadro-negro rabiscado. Adiante, uma fotografia da fotografia.
O coletivo Trëma, composto pelos fotógrafos Felipe Redondo, Gabo Morales, Leonardo Soares e Rodrigo Capote, dedicou-se à fotografia documental e editorial. Em Memento, o coletivo cria fotografias a partir das memórias de Dany Vásquez, da Colômbia, e Theresa Senga, de Angola, dois imigrantes que chegaram e vivem no Brasil.