TEXTO CURATORIAL
"O futuro é ancestral", e a curadoria do Escuta Festival 2023 embarca nessa faísca da filósofa Katiuscia Ribeiro compartilhando o aqui e agora e o passado que é futuro, desmistificando o tempo, valorizando cosmovisões originárias e africanas, retomando territórios de pensamento, história e memória dos sobreviventes das múltiplas diásporas.
Foram quase três anos marcados pela impossibilidade do encontro, atividades on-line, lives, e pessoas separadas por telas ou pela ausência do acesso a elas. Por isso, esta quarta edição do Escuta Festival celebra o encontro, a presença e a retomada de corpas pretas, periféricas, originárias, faveladas e dissidentes, como protagonistas e detentoras – que foram, são e serão – dos saberes e tecnologias ancestrais que garantem a sobrevivência de gerações.
É da reunião de pessoas para a colheita ou construção que surge a palavra "motirõ", do tupi-guarani, que dá origem à palavra "mutirão" - o que é feito e realizado por muitas mãos. A reunião de nossas corpas para pensar futuros ancestrais deseja e realiza, para que cada saber e cada pessoa fazedora de cultura desta cidade seja valorizada como central na transformação desse território.
Nos movimentamos conforme o direcionamento de nossos Oris. Ori, palavra iorubá que significa cabeça, refere-se à sua intuição pessoal, sua força e grandeza interior que Ori-enta os caminhos. Ori fala de diversas formas. É preciso prestar atenção para escutá-lo e provocar a construção de novas formas de existir, viver e construir histórias e memórias. São essas mesmas corpas que também buscam inverter os polos do mapa, valorizando o hemisfério sul para não mais nortear ações, e sim apontar as bússolas para o que é magnético e atrativo: a nossa cultura e sabedoria popular.
Para toda escuta há um mensageiro, e o mensageiro dos caminhos é Esú, entidade nigeriana que alimenta a filosofia primordial na vida de inúmeras comunidades pelo mundo. Considerando que a ética de Esú nos ensina que o mundo é um grande mercado e que a banca do mercado sempre tem dois lados, convidamos todes a perceber a importância do respeito às diferenças ideológicas e da comunhão do encontro.
A reunião aponta para a escuta e para o afeto. Como complexas coreografias afetivas, as atividades desta edição do Escuta Festival criam experimentações que interferem nos usos da arquitetura do IMS Rio, possibilitando novas e diferentes relações com essas estruturas. Filmes são levados para a área externa, para serem assistidos de dentro da piscina; gerações diversas conversam e se alimentam em axé próximo ao riacho; e cânticos celebram movimentos circulares. A escuta expande as fronteiras das formas do encontrar, criando biomas de interlocução nas múltiplas linguagens. Instauram-se ecossistemas, atmosferas dos mais variados desejos que, de tanta vida e vontade, beliscam a imaginação do Brasil.
Do patrimônio ao matrimônio, da gestão à matrigestão, do patriarcado ao matriarcado, o movimento que se faz é um retorno às origens, ao Ori, ao corpo-território que se dobra em adobá a Onilè, a mãe-Terra. O chão merece cuidado, zelo, reverência. O Escuta Festival em 2023 se propõe ao movimento semiótico de retorno, de olhar o passado para intervir no presente e contribuir na gestação de um novo futuro para nós, uma metrópole ressignificada por quem não permite mais o silenciamento e, agora, fala!