O segundo filme estudantil de Charles Burnett, após um projeto sem título no ano anterior, hoje considerado perdido, tem a magnitude de uma ruptura radical: as periferias negras norte-americanas parecem filmadas pela primeira vez. Prosaicas cenas cotidianas – uma briga, o conserto de um carro, a tentativa de mover uma máquina de lavar – filmadas nas imediações de South Central, bairro onde Burnett cresceu, adquirem a força da inauguração de um mundo feito de gestos, posturas, jeitos de falar que o cinema hollywoodiano negligenciou ou pasteurizou por décadas a fio. Essa crônica negra prefigura a obra-prima O matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977), estabelece os principais temas e as marcas do estilo do cineasta mais conhecido da L.A. Rebellion, laureado com um Oscar honorário pela carreira em 2018.
Nas palavras de Burnett em uma entrevista, o tema do filme é “essa sensação que você tem às vezes, quando atinge um ponto em que existe um sentimento de que você não vale nada”. Filmado em 16 mm, com um elenco formado por atores não profissionais, sincronizado e montado à mão nas dependências da UCLA, o método de realização praticado em Um bocado de amigos sumariza os principais traços das produções da L.A. Rebellion: baixo orçamento, trabalho intensamente colaborativo entre os estudantes (que exerciam diversas funções nos filmes uns dos outros), liberdade de experimentação. O filme tem participação, na equipe de som, do brasileiro Mario Vieira da Silva, à época estudante da UCLA, e colaborador íntimo de Burnett. Alguns anos mais tarde, Silva seria operador de câmera em A bolsa, de Billy Woodberry.
[Várias entrevistas de Charles Burnett foram reunidas no livro (em inglês) de Robert E. Kapsis, Charles Burnett: Interviews, editado pela University Press of Mississippi em 2011]
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