Flieg. Tudo que é sólido
Audiodescrição
Cronologia
Hans Gunter Flieg: vida e obra
Hans Gunter Flieg limpando a câmera Linhof, 1953. São Paulo, Brasil. Foto de Otto Svoboda/ Acervo IMS
1923–1939
Hans Gunter Flieg nasce em 1923 na cidade de Chemnitz, na Alemanha, então conhecida como a “Manchester da Saxônia” em função de sua economia primordialmente industrial, voltada, em especial, para o ramo têxtil.
Em sua casa, gravuras e esculturas de importantes nomes do expressionismo alemão, algumas de integrantes do grupo Die Brücke de Dresden — entre eles, Karl Schmidt-Rottluff, Max Pechstein, Emil Nolde e Ernst Barlach —, convivem com edições especiais de artistas e escritores publicadas em Leipzig por uma sociedade de bibliófilos, da qual seu pai era associado, e com objetos de design, como vidros especiais da Boêmia e da Silésia e objetos de madeira da própria Saxônia.
Nesse momento, a então República de Weimar busca superar os efeitos da derrota sofrida pela Alemanha na Primeira Guerra, voltando-se para a construção de uma nação moderna, baseada em um racionalismo crítico, que estruturasse tanto a ciência e a tecnologia como as artes e a cultura. O momento é de relativa estabilidade e progresso e se estende de meados da década de 1920 até cerca de 1929-1930. Nas artes visuais, a Nova Objetividade de Albert Renger-Patzsch e seu livro Die Welt ist schön convive com o funcionalismo arquitetônico de Walter Gropius, que em 1919 funda a Bauhaus. László Moholy-Nagy, professor da mesma escola, publica em 1925 seu livro Painting, Photography, Film e afirma que “o analfabeto do futuro não será aquele que ignore a escrita, mas a fotografia”. Weimar, Berlim, Dresden, Leipzig e Dessau tornam-se, assim, nesses anos, centros de referência e de vanguarda na política, nas artes, na ciência e na técnica.
As referências sociais e culturais de Flieg, já a partir de sua infância, gravitam, portanto, em torno dos eixos da indústria e das artes aplicadas, característicos tanto daquela região da Saxônia como de outras regiões da Alemanha; gravitam também em torno das artes visuais e da literatura, presentes tanto em seu círculo familiar mais estreito como mais amplo. Deve-se citar aqui a trajetória de Stefan Heym, primo de Flieg, escritor exilado nos eua desde 1933, mas que é expulso do país no período do macartismo por conta de sua atuação próxima a movimentos operários. Heym retorna então à Alemanha e se torna um dos mais importantes escritores do lado oriental. Após a reunificação, vira membro e presidente do Senado alemão e falece em 2011.
É, assim, nesse contexto de efervescência política, social e cultural, em uma Alemanha que em apenas duas décadas, entre 1919 e 1939, transita de experiências democráticas e culturais progressistas e radicais para um regime autoritário fascista que leva à Segunda Guerra, que Flieg cresce e realiza seus estudos primários e secundários.
A convivência com as artes e a cultura nos âmbitos familiar e escolar se soma a uma prática precoce da fotografia. Em 1932, ganha de seu tio sua primeira câmera fotográfica e realiza entre aquele ano e 1939 uma documentação fotográfica da família, em especial nos períodos de férias. A partir daí, Flieg tirará excelentes fotos de seus familiares ao longo de toda a sua vida; essas fotos, entretanto, ele preferirá manter no âmbito restrito do seu universo privado.
Após o acirramento do extremismo nazista contra os judeus, marcado pela noite de 9 de novembro de 1938 (“Noite dos Cristais”), a família de Flieg decide-se efetivamente pela emigração. Para o jovem Flieg, essa decisão colocará a necessidade de buscar formação para um trabalho que o permita atuar em outro país. A fotografia foi a atividade escolhida, em função de ele já ter familiaridade com esta linguagem e também pelo caráter universal dessa forma de expressão e registro. Os primeiros trabalhos de Flieg feitos com a câmera Leica durante seu aprendizado em Berlim já indicam sua aproximação com uma linguagem moderna no campo da fotografia, em consonância com as influências surgidas naquele momento de profunda renovação nas artes visuais então em curso. Enquanto o trabalho de caráter mais autoral realizado no espaço urbano berlinense procura uma construção arrojada da imagem, o trabalho em estúdio, orientado por Greta Karplus, volta-se para a aplicação, para imagens que operam no campo da publicidade, da ilustração e da comunicação mediante construções formalmente elaboradas e uma literalidade dirigida para o conceito original da mensagem a ser veiculada.
É com esta bagagem de aprendizado fotográfico, que se dá tanto no campo autoral como no profissional, que Flieg desembarca no Brasil junto com a família em dezembro de 1939, aos 16 anos de idade, estabelecendo-se em São Paulo.
1940–1945
Como faz com a família de Flieg, a crise europeia provoca uma intensa emigração de profissionais, intelectuais e artistas europeus para as Américas. No Brasil, os principais destinos desses imigrantes são cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Alemães, húngaros, poloneses, franceses, italianos, entre outros, muitos de origem judaica, aqui se estabelecem e atuam em diversas áreas da indústria, das comunicações e das artes visuais, contribuindo decisivamente para a modernização desses setores na década de 1940.
No final dessa década e na seguinte, cria-se um momento único, um ciclo intenso de industrialização e de desenvolvimento das cidades, que se reflete fortemente nas comunicações e nas artes visuais do país. Três áreas distintas, porém interligadas, sofrem transformações profundas nesse período. Em primeiro lugar, a comunicação visual, representada por revistas ilustradas como O Cruzeiro. Em segundo, o circuito das artes plásticas e das artes visuais, marcado pelas inaugurações, em 1947 e 1948, do Museu de Arte de São Paulo (masp) e do Museu de Arte Moderna (mam–sp), pela Bienal Internacional de Arte de São Paulo, criada em 1951, e pelo desenvolvimento do movimento moderno na fotografia, realizado no âmbito do Foto Cine Clube Bandeirante. E em terceiro lugar, postos a serviço de um setor industrial em crescimento, o parque gráfico e a área de publicidade e propaganda associada à mídia impressa, essa última impulsionada pelo estabelecimento da Escola Superior de Propaganda, em 1951, no Museu de Arte de São Paulo.
Assim, já a partir do início de 1940, Flieg pode realizar em São Paulo um primeiro estágio com o fotógrafo alemão Peter Scheier e, no final do ano, consegue um emprego no estúdio Foto Paramount da fotógrafa húngara Irene Lenthe. Trabalha a seguir na Companhia Lithographica Ypiranga, dirigida por Carlos Reichenbach, durante dois anos (de 1941 a 1943), e, depois, na Indústria Gráfica L’ Niccolini (de 1943 a 1945), em que convive com Kurt Eppenstein, gráfico alemão de Leipzig e pioneiro do off-set no Brasil.
1945–2000
Em 1945, Flieg estabelece-se autonomamente como fotógrafo profissional, iniciando uma trajetória de mais de quarenta anos no universo da fotografia de indústria, publicidade, arquitetura e artes. Ao longo destas quatro décadas, paralelamente aos trabalhos no campo da fotografia aplicada, realiza diversos outros projetos de caráter autoral, cultivando o retrato, a fotografia de paisagem, o registro de cidades históricas, como Ouro Preto e Paraty, e um olhar de caráter jornalístico e documental lançado sobre aspectos da cidade de São Paulo e sobre diversas localidades que conheceu em viagens pelo país.
Realiza o calendário Pirelli de 1949, todo fotografado com a câmera Leica, em que pratica uma linguagem derivada da fotografia de Paul Wolff e da experimentação formal da modernidade europeia das décadas de 1930 e 1940.
Em outros projetos comissionados, como na série de calendários que realizou para a Brown Boveri a partir de 1964, desenvolve cada tema de maneira independente, construindo seu olhar sobre o assunto de forma autônoma e editando o conteúdo final para apresentação ao cliente. Esse projeto representou para Flieg uma nova oportunidade de trabalho e criação, na medida em que a escolha do tema, do objeto constitui-se como algo novo, distinto dos trabalhos comissionados anteriores. É nesse contexto que realiza, entre outras, a documentação sobre Ouro Preto, que posteriormente será retrabalhada em alto contraste para o livro de Lucia Machado de Almeida.
Essa ambição autoral, sempre presente em sua obra comissionada e em projetos de sua livre escolha, aproximou Flieg de um universo de artistas, pensadores, técnicos e empreendedores que interagiram com ele em busca de resultados aplicados às suas atividades e demandas, ao mesmo tempo em que se nutriam de seu espírito de perfeição e de permanente busca pela qualidade que norteou toda a sua carreira. Entre eles podemos citar: Fred Jordan, Henri Maluf, Gershon Knispel, Fritz Lessin, Curt Schulze, Noemia Cavalcanti, Bruno Giorgi, Djanira, Tarsila do Amaral, Felícia Leirner, Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi.
Flieg conheceu Fred Jordan como o jovem diretor de arte da agência de publicidade da família Prado. A pedido dele, desenvolveu para a empresa Cristais Prado, de forma pioneira no Brasil, a fotografia de cristais e objetos de vidro registrados por transparência contra fundos iluminados, tendo como referência os catálogos da empresa sueca Orrefors. Jordan foi comparado por Olaf Leu — um dos designers mais conceituados da Europa — com o instrumentista que chegou a se tornar primeiro violinista da orquestra.
Nessa mesma época, vários arquitetos brasileiros iniciam diversas atividades relativas ao design de mobiliário. A partir de meados da década de 1940 até o início da década de 1960, destacam-se nomes como Geraldo de Barros, José Zanine Caldas e Lina Bo Bardi. Muitos deles mantêm ligações com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (fau–usp) ou com a Escola de Engenharia Mackenzie.
Paralelamente, como fotógrafo da i Bienal Internacional de Arte de São Paulo, organizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (mam–sp), em 1951, fotografa obras e conhece importantes nomes da arte internacional, entre eles, por exemplo, o suíço Max Bill, autor da escultura Unidade Tripartida, vencedora do primeiro prêmio de escultura daquela edição. No mesmo ano de 1951, Bill funda e passa a dirigir a Hochschule für Gestaltung em Ulm na Alemanha, que se transformará em grande referência para a formação de artistas e designers brasileiros nas décadas de 1950 e 1960, como Alexandre Wollner, Almir Mavignier e Mary Vieira.
Hans Gunter Flieg trabalha documentando os projetos de interiores e stands industriais do arquiteto Henri Maluf, feitos nos pavilhões do Ibirapuera durante as comemorações do quarto centenário da cidade de São Paulo em 1954 e na Exposição Internacional de Indústria e Comércio no Pavilhão de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em 1961. Na década de 1960, documenta a construção da fábrica da Olivetti e fotografa produtos de design premiado, como a calculadora eletrônica Olivetti Logos 270.
É, portanto, dessa confluência de indústria com design, artes e arquitetura, que surge a potência da obra fotográfica de Hans Gunter Flieg, construída ao longo de quarenta anos de permanente busca pela qualidade. Sua produção se desenvolve em um ambiente marcado pela trajetória quase renascentista da São Paulo do pós-guerra — cidade em grande parte devedora dos saberes trazidos por imigrantes que, como Flieg, deixaram seus locais de origem em função de perseguições raciais, religiosas e ideológicas, e que atinge sua plena consolidação ao longo das décadas de 1980 e 1990, tornando-se a grande metrópole industrial da América Latina.
Em 1981, realiza-se no Museu da Imagem e do Som (mis) de São Paulo uma retrospectiva do arquivo fotográfico de Flieg, e, em 1993, um portfólio de suas imagens é incorporado à coleção Pirelli/masp de São Paulo.
2000–2023
A obra de Flieg ingressa no acervo do Instituto Moreira Salles em 2006. Em 2010, o Instituto Moreira Salles produz e exibe no centro cultural do Rio de Janeiro a exposição Flieg fotógrafo. Uma adaptação, em versão menor, da exposição é exibida na galeria Zoom, no âmbito do 8º Paraty em Foco. Em 2015, a exposição, em versão integral, é exibida no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (mac–usp).
Em 2013, o ims realiza no Museu da Fotografia de Berlim a exposição Modernidades fotográficas: 1940-1964. Com curadoria de Ludger Derenthal, coordenador da coleção de fotografia da Kunstbibliothek em Berlim, e de Samuel Titan Jr., coordenador executivo cultural do ims, ela reúne as obras de Flieg, José Medeiros, Marcel Gautherot e Thomaz Farkas. A mostra segue depois para Lisboa (21/2 a 19/4 de 2015), Paris (6/5 a 26/7 de 2015), Madri (5/11 de 2015 a 31/1 de 2016). ims Rio (20/03 de 2016 a 5/3 de 2017) e IMS Poços (de 17/03 a 6/10 de 2018).
Em 3 de julho de 2023, Hans Gunter Flieg completa100 anos e em 22 de agosto de 2023 a exposição Flieg. Tudo que é sólido é inaugurada no ims Paulista.