Flieg. Tudo que é sólido
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Estação 2
Texto curatorial
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A tarefa da filosofia da fotografia é dirigir a questão da liberdade aos fotógrafos. Filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível.
Vilém Flusser, 1985
Hans Gunter Flieg, nascido em Chemnitz na Alemanha em 3 de julho de 1923, cresceu em uma família judaica de classe média. Com o acirramento do extremismo nazista contra os judeus, a família de Flieg decidiu-se pela emigração. Entre maio e julho de 1939, Flieg estudou em Berlim com Grete Karplus, que fora fotógrafa do Museu Judaico de Berlim (aberto em 1933 e fechado pelos nazistas em 1938) e lecionava a profissão para jovens aprendizes em seu apartamento. É com esta bagagem de aprendizado fotográfico, que se deu tanto no campo autoral como no profissional, que Flieg desembarcou no Brasil junto com a família em dezembro de 1939 aos 16 anos de idade, estabelecendo-se em São Paulo. Em 1945, começou sua trajetória como fotógrafo profissional, dando início a uma prática de mais de quarenta anos no universo da fotografia de indústria, publicidade, arquitetura e artes.
A obra de Hans Gunter Flieg contribui para a compreensão das estruturas formadoras da sociedade contemporânea. Sua fotografia, em grande medida, incorpora elementos de modernidade associados, por exemplo, à Nova Objetividade alemã dos anos 1920 e 1930. Os trabalhos de Flieg reunidos para esta mostra — realizada neste ano em que o fotógrafo completa 100 anos — voltam-se para o registro fotográfico direto dos objetos industrializados, do espaço industrial e de sua arquitetura, instalações e equipamentos, bem como de outros elementos da materialidade do mundo, para falar como Albert Renger-Patzsch em sua célebre publicação Die Welt ist schön [O Mundo é belo], de 1928. Num caminho paralelo ao trabalho desenvolvido pelo casal de artistas Bernd e Hilla Becher na Alemanha do pós-guerra, e apesar de sua singularidade, a fotografia de Flieg relaciona-se também, em parte, com a retomada de uma objetividade conceitual e crítica. Isso acontece nos seus trabalhos de documentação seriada dos elementos constitutivos da sociedade industrial, que conduzem o observador, em muitos casos, a imagens que transcendem sua dimensão referencial e documental, ampliando e atualizando a relevância da produção do fotógrafo no âmbito da fotografia moderna e contemporânea no Brasil.
O olhar que nos oferece Flieg sobre uma sociedade industrial que se quis e se fez moderna na São Paulo do pós-guerra, sem romper entretanto com os mecanismos de reificação, alienação e poder de seu tempo, nos leva a refletir agora, décadas depois, sobre uma sociedade pós-industrial igualmente imersa em profundas e radicais transformações e contradições, em que mais uma vez “tudo que é sólido desmancha no ar”, se quisermos lembrar a frase com a qual, em 1848, já em plena revolução industrial, Karl Marx descreveu a permanente transformação dos objetos em capital.
Nos tempos atuais, entretanto, o eixo de acumulação desloca-se da produção e do produto industrial para o campo do conhecimento e da comunicação, para o campo amplo e pervasivo dos dados e algoritmos, em que, como bem aponta Vilém Flusser, conquistar a liberdade é necessariamente e inescapavelmente conscientizar-se das estruturas que regem as imagens, as informações, os programas e os aparelhos, “talvez a única revolução ainda possível”. Ou também, como afirmou Marshall Berman no início anos 1980, “apropriar-se das modernidades de ontem pode ser, ao mesmo tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato de fé nas modernidades — e nos homens e mulheres modernos — de amanhã e do dia depois de amanhã”.
A obra fotográfica completa de Hans Gunter Flieg é composta de mais de 59 mil negativos e fotografias e contém registros fotográficos que se iniciam ainda na Alemanha e se estendem até meados da década de 1980, no Brasil. Em julho de 2006, foi incorporada ao acervo do Instituto Moreira Salles e está, desde então, disponível e aberta para pesquisas e estudos de seus importantes aspectos documentais e estéticos.
Sergio Burgi
Hans Gunter Flieg: um teatro da sociedade industrial, no centenário do seu autor
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Quando Hans Gunter Flieg chega ao Brasil em 1939, com 16 anos, encontra uma nação em crescente processo de industrialização — o “país do futuro”, conforme o epíteto que o escritor de língua alemã Stefan Zweig apresentaria ao mundo em 1941. Esse país propiciaria, mesmo sob a ditadura de Vargas, a esperança de um mundo diferente daquele que o jovem Flieg deixara: a Europa destruída pela guerra empreendida pelo nazismo e pelo fascismo e por sua política de perseguição e extermínio de pessoas que, como o jovem fotógrafo, nasceram e cresceram numa família judaica.
Ao abrir seu estúdio fotográfico em 1945, Flieg vai se dedicar durante décadas a um trabalho de documentação de projetos industriais comissionados por grandes empresas, mas também a fotografias de arquitetura e de produtos que o seu olhar registrará como elementos estruturantes dessa sociedade industrial que desponta. A fotografia documental de Flieg, assim como o seu trabalho de publicidade, são ilustrações fascinantes da frase com a qual Marx tinha descrito a transformação da mercadoria em valor: “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Ao fotografar os lugares da sociedade industrial, em que podemos encontrar a fábrica, a loja ou a Bienal de Arte de São Paulo, ao fotografar objetos produzidos industrialmente ou objetos de arte exibidos no contexto dessa mesma sociedade, Flieg vai encenar um meticuloso teatro do objeto e desses espaços — teatro em que o enquadramento construirá cada composição, articulando virtuosamente a luz, o contraste e a ordenação da realidade a partir da dimensão cenográfica de cada fotografia. Todos os paradoxos da relação entre a materialidade do mundo e a sua representação enquanto imagem, entre o objeto e a sua apresentação inobjetual, encontram na fotografia de Flieg uma síntese extraordinária, que esta exposição manifesta e documenta.
Celebrar a feliz ocasião do centenário de Hans Gunter Flieg apresentando a exposição Flieg. Tudo o que é sólido é para o Instituto Moreira Salles uma excelente oportunidade para reapresentar um dos trabalhos autorais mais singulares e coerentes desenvolvidos na história da fotografia brasileira. Preservando no seu acervo cerca de 35 mil negativos produzidos pelo fotógrafo, o IMS volta a disponibilizar para conhecimento e reflexão um recorte de um trabalho que acompanha de modo surpreendente as questões que haviam sido antes levantadas por fotógrafos e artistas da chamada Nova Objetividade no contexto da fotografia alemã, e da fotografia de arte conceitual dos anos 1960.
O ims expressa sua maior gratidão a Hans Gunter Flieg pelo trabalho que esta exposição resume, assim como pela generosidade com a qual acompanhou o processo de sua preparação. Agradecemos igualmente o trabalho desenvolvido por Sergio Burgi e por Mariana Newlands, curadores desta mostra; também endereçamos uma palavra de reconhecimento a todas e a todos que, no ims, uma vez mais, possibilitaram esta realização.
Marcelo Araújo, diretor geral
João Fernandes, diretor artístico
Instituto Moreira Salles
Estande da Mercedes-Benz (projeto de Henri Maluf) na Exposição Internacional de Indústria e Comércio, Pavilhão de São Cristóvão, Rio de Janeiro, 1960. Foto de Hans Gunter Flieg/Acervo IMS