A câmera é disparada. O rosto do rapaz, talhado entre o tempo e as circunstâncias da vida, foi captado e registrado na eternidade em alguns milésimos de segundo. Seus olhos fundos dizem à câmera: eu também te vejo. Porém, diferente do olhar, a técnica fotográfica coloca no mundo uma imagem dele que nem ele conhece. Como mídia, a câmera é a mediadora entre a pessoa fotógrafa e o “objeto” fotografado, uma vez que o ato fotográfico transforma tudo em objeto. Neste momento, observar Noite na ladeira I (1985) é notar os indícios de uma presença, um lugar, um tempo, numa relação de poder e conhecimento sobre o passado que ainda leva muitos a acreditarem na fotografia como capaz de captar a realidade tal como ela é.
Se, por um lado, a fotografia se tornou indispensável para a memória, a documentação, as artes, as maneiras como as identidades se apresentam, e revolucionou os modos de comunicar e ler o mundo, também é utilizada em processos violentos, na propagação da barbárie e na apropriação em relação ao Outro, como no fotojornalismo de guerra. Até os termos são os mesmos utilizados para as armas: disparar, capturar. Torna-se recurso de poder quando aderida às práticas que historicamente penalizam corpos, raças, gêneros e engessam, por olhares geralmente brancos e patriarcais, territórios e subjetividades. Nesse sentido, o conjunto apresenta as escolhas de Luiz Braga no processo de aproximação com a alteridade, em imagens permeadas por práticas de convivência, idas e retornos, cenas que revelam o fotógrafo como observador, ora participante, ora especulativo aos acontecimentos.
“Tenho como metodologia visitar inúmeras vezes os locais onde fotografo, o que faz com que me torne conhecido e possa, conhecendo, respeitar os códigos, o ritmo e os costumes do lugar.” Luiz Braga
O recorte apresenta a relação corpo-território na formação da paisagem, através de cenas do cotidiano ribeirinho, na arquitetura das palafitas, na travessia solitária da mulher na rodovia Transamazônica, a infância nos pastos alagados da ilha do Marajó, na tradicional procissão do Círio de Nazaré e o caminhar do estudante militar em Belém. Além de apresentar distintos horizontes da região Norte, sobretudo no estado do Pará, as imagens de Luiz Braga denotam como a presença humana cria, elabora e transforma os territórios, constituindo diferentes modos de estar e habitar, as especificidades dos lugares e os modos de operar entre a vida e o cotidiano.
Os trânsitos e fluxos compõem rotas significativas na formação do território que conhecemos como Norte, como o ciclo da borracha durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que proporcionou uma das principais diásporas internas no Brasil, entre as regiões Norte e Nordeste, em 1972, a ufanista inauguração da Transamazônica, projeto inacabado da ditadura militar brasileira (1964-1985), e o garimpo na Serra Pelada nos início dos anos 1980 configurou uma corrida ao ouro, levando milhares de brasileiros a se deslocarem até Marabá (PA). Tais ciclos econômicos reconfiguraram a paisagem por meio da ideia equivocada de modernidade e desenvolvimento para a Amazônia, através do extrativismo predatório e do epistemicídio, que resultaram em desastres ambientais. Desde o “inferno verde”, inóspito, hostil e exótico, habitado por feras selvagens, até a “selva intocada”, que idealiza a Amazônia e ignora a ação milenar de povos indígenas para manejo e manutenção da floresta, os estereótipos sobre a região são parte de uma metodologia de dominação exploratória.
Um relógio pendurado na parede, atravessado por fios e escorridos, congela o instante no interior da fábrica de café. O quartilhão com flores artificiais carrega a inscrição “águas profundas”, acompanhado pelo liquidificador, dois vasos sobre a toalha de crochê, natureza-morta contemporânea. O menino ajusta o sinal da televisão instalada sobre uma toalha com estampas de frutas, enquanto ao fundo é revelado o espírito colecionista de quem possui, guarda e organiza objetos: diversos quadros, o calendário, o relógio, flores, toalhas e cabos sobre as ripas de madeira. Espaços repletos de objetos, e a presença humana rodeada deles. Objetos como extensão da vida.
Numa arqueologia da vida, Luiz Braga lapida um conjunto de imagens que reorganiza a percepção do utilitário, do trivial, que ativa memórias, afetos e sinaliza a assinatura das pessoas no mundo. A fotografia assegura a continuidade de uma imagem atribuída à cena, nem sempre a cena em si. Nas obras, alguns objetos retratados aparentam outro tempo, distantes da noção atual sobre eles, mas próximos o bastante para o reconhecimento. Em outros tempos, o tema dos ambientes domésticos era definido como “arte feminina”, enquanto a representação dos eventos históricos e religiosos ficava a cargo da produção de homens. A despeito dos limites da arte, o fotógrafo desenvolveu modos de relações que o permitem adentrar a intimidade de casas e comércios, observar, acolher e registrar os signos do cotidiano, índices de uma presença-ausência, indicadores de aparições pretéritas, de um tempo que aconteceu e permanece nos rastros das coisas.
A carreira de Luiz Braga tem início no campo da publicidade, registrando o artesanato local, paisagens turísticas, produtos e retratos em geral. É no intervalo do trabalho comercial, entre as décadas de 1970 e 1990, que desenvolve grande parte das obras na exposição. O núcleo apresenta o interesse em registrar as profissões comuns à época, a exemplo da recorrente presença de alfaiates, até práticas atreladas a aspectos próprios ao território, como a pesca e a colheita do açaí. Numa cartografia sobre o trabalho, registra a atuação dos fotógrafos populares, com seus estúdios a céu aberto, fundamentais para o imaginário contemporâneo sobre o passado, retratistas do povo num período de intensa transformação urbana e socioambiental da capital paraense. Atravessada por rios, afluentes e bacias, Belém é uma cidade híbrida, habitada tanto pela estrutura metropolitana, com a presença de polo industrial, quanto pelas formas de vida tradicionais à floresta, em convivência nem sempre harmônica. Ora o território indica os limites da atuação humana, ora tais ações moldam o espaço. Desde a concentração da criança no cabeleireiro, o descanso do borracheiro, até as mulheres na fábrica de tecido, o olhar de Luiz Braga captura cenas que contextualizam a autoria humana dos trabalhos em tempos de industrialização. Outro aspecto são os ambientes e objetos das profissões, através de registros internos, íntimos, em espaços ora vazios, ora ocupados.
O conjunto apresenta vestígios das caligrafias cotidianas encontradas no arquivo de Luiz Braga. Compreende sintaxes populares, como as diferentes maneiras em que palavras, letreiros e tipografias estruturam o cotidiano nos territórios fotografados, recursos visuais que contribuem para a significação da vida. São os rastros das pichações na parede em Montando a barraca (1985), o anúncio circense em Broadway Circus (1989), a palavra que nomeia lugares, acompanha a arquitetura e enquadra o rosto da mulher em Bilheteria em Mosqueiro (1989). Em perspectiva semiótica, os letreiros aparecem não apenas como texto, mas portadores da cultura visual do território, ao conservar estéticas próprias às diversas caligrafias amazônicas. Em Fátima cabeleireira (1991), o letreiro na fachada do estabelecimento acompanha e reforça a arquitetura do prédio, que remete ao modernismo popular paraense conhecido como Movimento Raio-que-o-Parta, marcado por azulejos coloridos e formas geométricas, como setas e raios, principalmente em construções datadas entre as décadas de 1940 e 1960, parte significativa da identidade cultural do Pará. Na mesma imagem, se destaca a diversidade técnica e artística das tipografias realizadas pelos abridores de letras, profissionais que se organizam em escolas, ou seja, mestres que desenvolveram estilos e aprendizes que mantém e replicam esses saberes.
Em 2006, durante a transição da técnica analógica para digital, Luiz Braga começou a investigar a funcionalidade de fotografia noturna de sua câmera, inicialmente em contextos de baixa iluminação, seguindo para o uso à luz do dia. Como resultado, obteve imagens em tons prata-esverdeados que ampliaram a pesquisa cromática e marcam a construção de uma nova poética. A contínua série Nightvision – Mapa do Éden elabora uma visualidade fantástica sobre a Amazônia, entre o verde militar e as nuances de sombras, na qual a ficção das cores abre espaço para a inventividade narrativa: o surrealismo como recusa aos estereótipos sobre o território.
Criada no final da década de 1920, a câmera infravermelho foi desenvolvida para defesa aérea na Grã-Bretanha, porém o primeiro uso da visão noturna em campo ocorreu pelo exército alemão, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A nova tecnologia permitiu um feito sem precedentes: a extensão do tempo nas guerras, antes limitadas à luz solar. A capacidade de visualização foi exponencialmente aumentada pelos Estados Unidos ao longo da Guerra do Vietnã (1955-1975), mas foi na Guerra do Golfo (1990-1991) que as imagens noturnas alcançaram o imaginário mundial, com a transmissão em massa pelos meios de comunicação. Atualmente, a visão noturna é um recurso comum ao universo dos jogos eletrônicos, assim como a transmissão de guerras em tempo real via redes sociais e smartphones. Se as imagens chocam, na medida em que apresentam algo novo e a repetição leva a naturalização do horror, a despeito dos usos benéficos à vida, como na tecnologia médica, a visão noturna permite ver o que não deveria ser visto ou existir, multiplicando o acesso e a banalização das atrocidades humanas. Na série Nightvision, simbolicamente, o uso da fotografia noturna é um lembrete do constante militarismo no Brasil, entre o passado recente da ditadura militar (1964-1985) até as investidas dos últimos anos, além do crescente interesse internacional sobre a Amazônia.
Numa generalização radical da definição de beleza, os retratos de Luiz Braga parecem imersos no senso humanista de valorização das pessoas comuns e dos feitos cotidianos. Nos primeiros anos da fotografia, as definições do belo eram atreladas à realização de imagens idealizadas. No início do século XX, tal noção passou a ser questionada por fotógrafos mobilizados pela ideia de que a beleza pode ser encontrada em qualquer tema. Em panorama, o gesto fotográfico de atribuir importância a um assunto foi marcado pela mudança do referente: das figuras enobrecidas aos cidadãos comuns, dos grandes feitos à vida cotidiana, da aristocracia aos trabalhadores e imigrantes.
A mulher sorridente, apoiada no balcão do bar, com a televisão ligada ao fundo, congela a imagem de Sílvio Santos. Avó e neto observam a feira livre. O olhar fundo da promesseira que carrega a fé sobre a cabeça. Nas obras de Luiz Braga, destaca-se o tensionamento da forma clássica do retrato, marcada pelo foco no assunto e fundo neutro. Dessa forma, o conjunto apresenta imagens nas quais as vestimentas, os objetos e os ambientes são protagonistas junto aos personagens, numa relação corpo-arquitetura. Os espaços ocupam parte significativa das imagens e possuem narrativas próprias. Personagens que revelam o sentido cuidadoso da composição, com formas suaves talhadas pelas nuances da luz nas fotografias em preto e branco, enquanto as coloridas condensam a vibração cromática. As expressões espontâneas de retratos não construídos, resultado da tentativa de captura da interioridade humana, contrastam com a serenidade dos retratos posados. Cenas que parecem conter temporalidades e situações distintas expressam a simultaneidade própria da imagem cinematográfica – fonte referencial para o artista.
Cenas de concentração, introspecção, descanso, caminhadas individuais ou coletivas no cotidiano de trabalho, momentos de observação e contemplação do horizonte compõem o núcleo “O antirretrato”. Se, nos retratos, Luiz Braga tensiona a forma clássica, evidenciando as pessoas com os seus contextos, no conjunto de antirretratos o artista radicaliza esse interesse através da diluição parcial ou total das identidades dos personagens, em imagens protagonizadas pela gestualidade corporal inserida nos ambientes. São fotografias que priorizam a contraluz, as silhuetas, a ausência de foco num único personagem ou em toda a cena, e a recusa completa do principal valor na retratística tradicional: o culto ao indivíduo. Tais procedimentos desafiam e repensam a compreensão fotográfica mediante experimentos estéticos que desestabilizam parâmetros ortodoxos, num gesto de antifotografia, como na obra Brega em Caraparu (1996). Apenas uma pequena parte das fotografias de Luiz Braga é realizada a partir de combinados prévios, agendas e esboços de cena, porém nenhuma entre as imagens do conjunto. Nesse contexto, a prática de “espiar” é potencializada pela captura do inesperado, do imprevisível, a partir da observação da vida e do cotidiano que acontece a despeito do artista.
“A cor me abriu um território para a visualidade popular amazônica, que tem origem na sabedoria tanto gráfica como cromática dos povos ancestrais. Está nas sementes, na arte plumária, na cor das frutas, dos pássaros, das folhagens e se expressa nos barcos, nas canoas, nas fachadas, nos bares, nos tabuleiros, nas estampas etc.” Luiz Braga
A frase do fotógrafo se refere ao período em que tomou contato com as cores presentes nas regiões ribeirinhas da capital paraense, na década de 1980. No entanto, se encaixa facilmente à percepção de Luiz Braga sobre a ilha do Marajó, campo de investigação desde 2006. O arquipélago é uma explosão de cores, território carregado de simbolismos que sugerem tempo para a observação cautelosa, da geometria das casas aos guarás, pássaros de vermelho inconfundível. Único núcleo inteiramente em cor, apresenta a produção mais recente do fotógrafo, na qual a luz equatorial eleva a vibração cromática presente em cenas destacadas do cotidiano marajoara. Em maioria, são situações que só podem ser vistas e realizadas através do convívio com pessoas do território, como a apresentação da banda marcial em Porta-bandeira e ônibus (2018), de adentrar à casa sensorial, em Interior lilás (2015), ou entender as funções das cortinas e dos tecidos na decoração e organização dos ambientes internos, como em Interior casa Gerlane, movimento II (2024).
Território de histórias e ancestralidade, imerso nos saberes indígenas que regem a culinária, a língua, a mitologia da região, os conhecimentos da vida em simbiose com a natureza, o Marajó é o berço de cerâmicas pré-históricas no Brasil, carregadas de simbolismos que compõem um complexo sistema de comunicação visual, organizadas em fases de produção. A resistência negra segue presente nos quilombos da região, como a comunidade de Gurupá, em Cachoeira do Arari, e Pau Furado, em Salvaterra.