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Mirada aos filhos da terra: o livro como território de imagem, memória e resistência dos povos indígenas

IMS Paulista

Texto da curadoria

A seleção curatorial da exposição propõe uma caminhada como na obra América invertida (1943), do artista hispano-uruguaio Joaquín Torres García, começando pelo Sul e indo em direção ao Norte. Os livros apresentados propõem uma imersão multivocal nas representações visuais de povos originários do sul ao norte das Américas, compondo um panorama sensível e crítico sobre o papel da imagem e de sua historicidade na construção, disputa e reapropriação das identidades indígenas – passando de instrumento de dominação colonial a meio de resistência, autoafirmação e compartilhamento de saberes ancestrais.

Do olhar estrangeiro que objetifica ao gesto autônomo que reconstrói o próprio retrato e registro étnico, estes livros percorrem distintas temporalidades e perspectivas. Títulos como os de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Leticia Rigat recuperam registros historiográficos, questionando o papel da imagem na criação de imaginários etnográficos e na exotização dos povos originários, como se estes fossem resquícios do passado. Já trabalhos como You Don’t Look Native to Me, de Maria Sturm, e Delegation, de Wendy Red Star, revelam uma virada crítica, com a autoria indígena ressignificando estereótipos e evidenciando que identidades indígenas são fluidas e resistem ao longo do tempo, não estando encapsuladas no passado.

Outros destaques da produção contemporânea indígena são as obras igualmente potentes Hêmba (Edgar Kanaykõ Xakriabá), Ãpekôyp Yvy – Corpos Terra (Priscila Tapajowara, Sandrieli Kaiowá e Vanessa Pataxó) e Os Guarani Mbyá (Vherá Poty e Danilo Christidis). Neles, a fotografia deixa de ser mera representação do outro e se torna extensão do corpo-terra, um gesto político, cosmológico e de memória. Em suas imagens, o tempo é espiral, o território é sagrado, e o ato de fotografar também o é. Os corpos, que antes eram interpretados por lentes alheias, agora revelam seus próprios mundos, sob suas próprias linguagens visuais e espirituais, como no conceito de “curandoria” do artista Jaider Esbell, da etnia Makuxi. A exposição se articula como um campo de encontros entre arte, antropologia, história e política, propondo não apenas a exibição de imagens, mas o reconhecimento de outras epistemologias visuais, onde o fotografar não é capturar um momento, mas um gesto de partilha. A imagem é viva, imbuída de significado e intenção.

 

Jé Hãmãgãy, curadora