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Paiter Suruí, Gente de Verdade. Um projeto do Coletivo Lakapoy

IMS Paulista

Textos da exposição

Texto institucional

Redefinindo o arquivo, um olhar indígena

 
O contato entre as culturas dos povos originários e as culturas dos protagonistas da invasão colonial, ou das suas descendências, tem, como é sabido, um longo histórico de genocídio, usurpação de territórios e violências inauditas. Esse é o peso de uma memória que não poderá ser construída no presente sem a consciência de que ela também é um campo de conflitos, de lutas, de resistências e da liberação de futuros que possam ser definidos a partir de outros caminhos, não só ainda possíveis, como exigíveis. Daí a necessidade de um diálogo que não seja impeditivo dos confrontos de pontos de vista, ou das diferenças, num reconhecimento comum das suas histórias. Existem hoje condições únicas para um encontro entre tecnologias herdeiras de sabedorias ancestrais e tecnologias inventadas ou desenvolvidas a partir dos princípios desse progresso técnico que camuflou uma visão colonizadora do mundo, a serviço do lucro extrativista, obtido através da exploração de geografias e de formas de vida. A fotografia, o cinema e outras formas de registro e de expressão audiovisual, artísticas ou não, fazem parte dessa história, sendo fascinante testemunhar como podem ativar hoje uma consciência crítica do passado e serem utilizadas como instrumentos de resistência, de luta e de emancipação, geradoras de novas formas de expressão artística e cultural.

Que no Brasil, no contexto de um povo originário e do seu território, como acontece com os Paiter Suruí, na Terra Indígena Sete de Setembro, na divisa de Rondônia e Mato Grosso, um grupo de jovens, indígenas e não indígenas, o Coletivo Lakapoy, tenha decidido reunir num arquivo as fotografias que as pessoas desse povo começaram a fazer, origina desafios e suscita reflexões que questionam os próprios conceitos que possamos formular de memória individual e coletiva, de arquivo ou de instituição museológica. Esse arquivo dinâmico não parou no tempo: além das fotografias que, a partir da década de 1980, eram consequência de um contato recente com os brancos e os seus dispositivos técnicos (o povo Paiter Suruí teve seu primeiro contato em 1969, menos de duas décadas antes), estão nele novas imagens e imaginários produzidos a partir de equipamentos contemporâneos, como celulares, câmeras de vídeo, drones, câmeras trap etc.

O Instituto Moreira Salles encontra na fotografia um dos domínios mais extensos e aprofundados dos seus acervos. Programar uma exposição que apresenta o arquivo reunido e construído pelo Coletivo Lakapoy, leva o IMS a outros desafios que redefinem a sua própria institucionalidade, confrontando-o com a missão de também contribuir para a proteção e o conhecimento de acervos coletivos que não são sua propriedade. Acervos como este são fundamentais para uma nova construção e interpretação da memória do Brasil e do mundo, e reinventam conceitos de arquivo, de documento e de expressão artística, como acontece com as imagens e os materiais que esta exposição apresenta.

A relação do IMS com o arquivo reunido pelo Coletivo Lakapoy não começou agora. Na revista ZUM #20 (2021), foi publicado um conjunto de fotos do arquivo Paiter Suruí, escolhidas e comentadas pelo artista Ubiratan Suruí. Em 2023, o Coletivo Lakapoy apresentou um projeto que foi vencedor da Bolsa ZUM/IMS. A iniciativa de constituição do arquivo, com o protagonismo de um olhar indígena sobre a sua própria história e memória, a reconfiguração da prática doméstica da fotografia enquanto representação da identidade coletiva de um povo indígena e do seu território, a articulação entre as imagens coletadas e as novas imagens produzidas pelos artistas e produtores de conteúdo visual pertencentes ao Coletivo ganham agora uma visibilidade mais ampla, a partir da exposição Paiter Suruí, gente de verdade, um projeto do Coletivo Lakapoy e da publicação que a acompanha.

O conceito e a organização do arquivo protagonizaram no passado uma história colonial marcada pela violência e pela opressão, enquanto resultado das formas de poder político, militar e econômico que o construíram e configuraram de acordo com os seus parâmetros, mas hoje pode ser também a semente de uma definição de novas institucionalidades, a partir do reconhecimento da condição de sujeito de quem foi invisibilizado nesse passado de opressão e repressão do seu olhar e das suas vivências. É hoje fascinante detectar as correspondências entre as práticas de arquivo do Coletivo Lakapoy e a apropriação subversiva do próprio conceito de arquivo protagonizado paralelamente na arte contemporânea por artistas como Marcel Broodthaers, Christian Boltanski, Ulises Carrión e Susan Hiller, entre tantas e tantos outros.

É igualmente inspirador associar este arquivo do povo Paiter Suruí a tantos outros arquivos que no mundo inteiro documentam e integram as lutas de povos e de coletivos pelos direitos políticos, artísticos e culturais das suas identidades. A história dos Paiter Suruí é também uma história de resistência e de lutas, desde o seu primeiro contato com os brancos. Foram essas lutas que garantiram a homologação do seu território, em 1983. São essas lutas que prosseguem hoje contra as ameaças do garimpo e de todas as demais invasões extrativistas que continuam ameaçando as suas e as nossas formas de vida. A luta pela memória é também uma luta pela existência de um povo, que esta exposição protagoniza, divulga e projeta.

Paiter Suruí, gente de verdade, um projeto do Coletivo Lakapoy é um momento relevante no diálogo necessário e na aliança desejável entre uma instituição cultural como o IMS e a realidade das culturas e das identidades indígenas no Brasil. Estamos cientes de que ainda estamos dando os primeiros passos num caminho que reconhecemos como um dever, cientes de que, como aprendemos nas palavras de Txai Suruí, cocuradora desta exposição, “instituições culturais se transformam ao ouvir indígenas e repensar as suas relações com eles”.1

O Instituto Moreira Salles expressa o seu mais profundo reconhecimento a Almir Suruí, grande liderança, por todo o apoio e pelo acompanhamento deste projeto. A nossa gratidão é extensiva a todas as pessoas deste povo, que participaram nos vários momentos desta realização, e para ela contribuíram das mais diversas formas, salientando nomeadamente os materiais que as mulheres Paiter Suruí realizaram especificamente para esta apresentação. Nos manifestamos particularmente reconhecidos à equipe curatorial, que conduziu todo este projeto, constituída por Txai Suruí, jovem liderança e ativista do seu povo, Lahayda Mamani Poma, curadora convidada, mulher indígena, arquiteta e pesquisadora, e Thyago Nogueira, coordenador de Arte Contemporânea do Instituto Moreira Salles. O nosso reconhecimento é extensivo a todas as equipes, internas e externas do IMS, que contribuíram decisivamente para este momento. Expressamos, sobretudo, a nossa mais profunda gratidão a todos os membros do Coletivo Lakapoy: a eles devemos tudo quanto neste projeto acontece.

Paiter Suruí, gente de verdade, um projeto do Coletivo Lakapoy é uma exposição que, inaugurando no centro cultural do Instituto Moreira Salles em São Paulo, será mais tarde apresentada na Terra Indígena Sete de Setembro. Ambos os momentos serão essenciais para o entendimento de como, tal e qual expressa Ubiratan Suruí, “nestes novos tempos, a fotografia é uma forma de resistência para os povos indígenas do Brasil”.2

 
Diretoria do Instituto Moreira Salles

 
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1 SURUÍ, Txai. “Os povos originários na visão dos museus”. Folha de S.Paulo, 25.04.2025.

2 SURUÍ, Ubiratan. “Gente de verdade”. ZUM #20, abr. 2021.


Texto da curadoria

Curadoria de Txai Suruí, Lahayda Mamani Poma e Thyago Nogueira

 

Quando a primeira câmera chegou em 1969, pensamos que roubaria nossas almas. Hoje, nossas próprias lentes contam quem somos.” Coletivo Lakapoy

Esta exposição é um convite para atravessar o tempo e conhecer a vida e a luta do povo Paiter Suruí, que vive na Amazônia brasileira, na Terra Indígena Sete de Setembro, entre Rondônia e Mato Grosso. Das histórias ancestrais às câmeras que hoje empunhamos como flechas, cada fotografia apresentada aqui é o fragmento de uma trajetória: nossa origem e nossos clãs; as invasões, as epidemias e a resistência do contato; nossa vida cotidiana e nossas estratégias para reflorestar terras, culturas e futuros. 

Paiter significa “ser humano”, alguém que pensa na coletividade, somos gente de verdade. Nossos antepassados viveram com a floresta, a terra é herança dos nossos Matered-ey (ancestrais). Viver com a floresta sempre foi nosso modo de vida, nosso povo ainda vive e depende dela.

A maioria das 800 fotografias históricas apresentadas e narradas nesta exposição foram feitas e guardadas por várias famílias do povo Paiter Suruí, desde os anos 1970, quando as primeiras câmeras foram deixadas no território. Reunido e digitalizado pelo Coletivo Lakapoy ao longo dos últimos anos, este acervo forra as paredes da exposição como um grande álbum de família, que abraça e interroga os visitantes. A exposição também apresenta fotos contemporâneas, entrevistas com a comunidade, vídeos dos comunicadores, uma projeção sobre a retomada das imagens do contato e a arte feita pelas mulheres. É a nossa história, contada por nós mesmos. 

Criado em 2022, o Coletivo Lakapoy carrega o nome e a missão do grande protetor da floresta, e vem mostrando como transformar ferramentas de colonização − como a fotografia e a escrita − em armas de proteção da identidade e do território. O projeto aproximou gerações, mobilizou labiway-ey (lideranças), resgatou conhecimento e reconheceu fotógrafos pioneiros, como Pamadeli Suruí e Mopiri Suruí. Ao visitar cada família e construir a cumplicidade necessária para que lhe confiassem estas fotografias, o coletivo deu origem a um acervo inédito e fez de sua atuação artística um exemplo de diplomacia. 

Aqui, o povo Paiter Suruí conta sua história através de sua produção de imagens, repleta de amor e carinho, mas também de conhecimento e respeito pela humanidade e pela natureza. O olhar íntimo desafia representações tradicionais, ao unir tempos e elementos que sempre pareceram inconciliáveis aos olhos não indígenas. Estas fotografias também mostram a capacidade dos Paiter Suruí de se adaptar e reinventar o mundo contemporâneo. Revelam também o futuro em construção: jovens cineastas, baristas, brigadistas e guerreiros digitais que levam nossa cultura para os museus e o mundo. 

Há mais de 500 anos, os povos originários vêm demonstrando uma profunda resistência, nos seus modos de pensar, viver, sentir e se alimentar, e, sobretudo, por meio de suas criações, novas formas de produção artística e possibilidades de mundo. 

Que essas memórias continuem a guiar os sonhos que entram no tempo dos Matered-ey e bebem da mesma fonte de saber. O conhecimento recebido de Palob (Criador) e a riqueza da cultura, que para alguns parece estar se perdendo, seguem vivos, apesar dos desafios. Ainda não é uma história definitiva sobre o nosso povo, muitas histórias ainda precisam ser contadas e ouvidas.

Esta exposição é um alerta: enquanto a política nacional age contra os direitos dos povos originários, garimpeiros e madeireiros ilegais avançam. Ainda assim, seguimos de pé, defendendo a floresta que nos sustenta − e que sustenta o planeta. Somos como a samaúma: nossas raízes estão no chão dos ancestrais, mas nossos galhos alcançam o mundo.

 
Txai Suruí, em colaboração com Lahayda Mamani Poma e Thyago Nogueira


Entrevista: Almir Narayamoga Suruí

Realizada por Thyago Nogueira na aldeia Lapetanha, Terra Indígena Sete de Setembro, em março de 2025.

 

Almir, quem são os Paiter Suruí?

Paiter Suruí é um povo formado pelos quatro clãs: Gameb, Gabgir, Makor e Kaban. Hoje os Paiter Suruí estão vivendo na Terra Indígena Sete de Setembro, que está pegando dois estados brasileiros: no centro e sul do estado de Rondônia e noroeste de Mato Grosso. Os Paiter Suruí estão ocupando uma área de 248 mil hectares de território, que homenageia o dia do contato que o povo Paiter Suruí teve com o não indígena, no dia 7 de setembro de 1969. Hoje os Paiter Suruí têm uma população de aproximadamente 1.600 pessoas dentro de quase 40 aldeias de todo o território. O povo Paiter Suruí está vivendo aqui neste território. 

 

Quais foram os desafios para demarcar o território e o que ele representa? 

O desafio , segundo nossos líderes que enfrentaram esses desafios me contaram, e com quem eu convivo também, sobre o dia a dia dessa história, ouvindo as lideranças mais antigas, para o estado de Rondônia, na década de 1970, vieram milhares de pessoas de migrantes de outros estados brasileiros, através de uma campanha em que o governo brasileiro estava dizendo que em Rondônia, naquele tempo, o território não tinha pessoas. Então vieram migrantes em busca de qualidade de vida de outros estados brasileiros, como do Sul, do Nordeste, de vários estados brasileiros, e ocuparam aqui. Ainda pequeno, eu convivi com esses desafios de luta das nossas lideranças para conseguir o nosso direito de ter território. Segundo as histórias e relatos, aproximadamente mais de 1 milhão de pessoas ocuparam o território, e por isso que nossos caminhos e estradas se chamam linhas, desde linha 1 até linha 15. Essas linhas trouxeram os invasores. Quer dizer, invasores entre aspas, porque o governo que trouxe, o governo dizia que não tinha gente aqui, então o governo que não tinha respeito pelos povos indígenas, nós não éramos gente para eles. Então foi onde gerou conflito e interesse sobre o território. Onde nós estamos hoje, gravando agora esse vídeo, aproximadamente 70 homens do povo Paiter Suruí enfrentaram mais de 500 famílias. Foi um conflito de guerra mesmo, Suruí morrendo, colonos morrendo, virou uma grande notícia nacional e internacional. E ainda era, me parece, o final do governo militar, o que trazia ainda mais desafios para nossas lideranças e o recém contato. Leva dois, três, quatro meses, ou um ou dois anos, o primeiro contato. O Itabira, que é um dos nossos líderes, ficou à frente da demarcação da nossa terra, conversando com o governo militar, e conseguiu, em 1983, homologar o território e fazer a demarcação física de 248 mil hectares, com apoio da força e da segurança pública do governo federal, com apoio do governo federal através da Funai, e assim conseguimos realizar vários processos demarcatórios que aconteceram. E hoje o Território Sete de Setembro é uma das poucas terras indígenas que está aí todo registrado, homologado, registrado no patrimônio da União e tem o direito do povo Paiter Suruí de usufruir, direito que foi garantido pela luta das nossas lideranças.

 

Qual a importância de construir esse arquivo fotográfico, organizado pelos próprios Paiter ? 

Organizar o arquivo fotográfico é muito importante para nossas gerações, isso pode realmente trazer e mostrar para as futuras gerações do nosso povo como nós enfrentamos essa colonização. E também sobre o contato, quando tivemos grandes epidemias, e o nosso povo quase acabou. Esse arquivo fotográfico conta essa história, e por isso é muito importante para nós. E ser feito pelos Paiter Suruí é mais importante ainda, porque isso demonstra que cada vez mais nós estamos construindo o instrumento que possa dialogar com a sociedade nacional e internacional: quem somos nós, os Paiter Suruí, e o que nós fazemos a partir da nossa luta, nossa vida no dia a dia, nossa resistência, é importante para todo mundo, porque hoje o nosso território também tem um papel importante nas mudanças climáticas e de desenvolvimento dos nossos estados e dos nossos municípios. A cultura que o povo Paiter Suruí tem ajuda bastante o Brasil a refletir que existe essa grande cultura em vários povos também, e entre eles o nosso. 

Arquivo fotográfico pode e deve ser um instrumento importante de construção de uma história de como a gente vem lutando para construir e fortalecer cada vez mais a autonomia do nosso povo. E, por esse motivo, o próprio povo Paiter, através de seu trabalho, está fazendo isso, mostrando que também somos capazes de nos organizar e dialogar e ajudar a construir o futuro que o Brasil precisa respeitar. 

 

Quais são os desafios para liderar o povo ?

O desafio sempre vai existir, mas hoje, como líder maior do meu povo Paiter Suruí, eu tenho tentado realmente dialogar com os desafios. O desafio pode aparecer a cada momento, mas pode se transformar como um caminho, por exemplo. Aqui nós não temos uma política pública do governo para atender nossa necessidade, e hoje o povo Paiter Suruí está construindo o plano de gestão do território e ambiental do seu povo, que se torna um grande instrumento para o povo fortalecer sua autonomia e desenvolver seu território com sabedoria, utilizando tecnologia, utilizando a política pública, utilizando dos direitos jurídicos que o povo indígena tem para mostrar para a sociedade que é possível desenvolver economicamente, ambientalmente, culturalmente um território indígena, que possa ser hoje uma experiência, um modelo para o desenvolvimento da Amazônia como um todo.

 

Qual a importância da produção da imagem, fotografia e vídeo, pelos próprios Paiter Suruí?

A importância é enorme, e como líder maior fico muito feliz com isso, porque é o resultado de um trabalho que tenho tentado, que é mostrar para o meu povo sua capacidade. Em 2007, a gente teve uma parceria com o Google, uma grande empresa tecnológica mundial, que nunca chegou aqui na Amazônia, e chegou através de nós. Nós tínhamos essa ideia com o Google, de ensinar como usar a fotografia, como usar tecnologias, como usar a plataforma tecnológica do Google para monitorar o nosso território, e o resultado hoje é esse, o coletivo Lakapoy. Porque essa equipe do Google veio e ensinou que é importante pra gente. Porque na nossa cultura Paiter Suruí a gente tinha medo de máquina fotográfica, a gente tinha medo de tecnologia, porque a gente dizia que eles poderiam tirar os nossos espíritos e levar junto com as nossas fotos o nosso espírito, e a gente pode ficar fraco espiritualmente, e assim pode chegar a nossa morte, e esse era o medo da gente.

Então, hoje, a gente tem essa compreensão de treinar cada jovem a entender de volta esse ensinamento, essa aprendizagem dentro do território, e fortalecer nós, Paiter, através do seu ensinamento. Essa é a importância de uma fotografia tirada por um Paiter Suruí. Fico muito feliz. Ao mesmo tempo, eu quero aqui agradecer todo mundo que está ouvindo este depoimento que estou fazendo do povo Paiter Suruí. Meu povo quase acabou, mas nossa luta, nossa resistência, é importante para nossa sobrevivência, e por isso nós sempre vamos construir estratégias de diálogo, porque nós entendemos que nossa união com a sociedade é importante para compreender o desafio que o mundo tem. Esse desafio que eu falei não é só no território. Um dia vocês vão entender que no mundo nós somos iguais. Nós, pessoas, também somos iguais, e por isso os desafios globais são todos nossos, e vamos juntos lutar contra esse tipo de desafio. 

 

E quais são os desafios para proteger o território hoje?

Hoje o desafio é muito grande. Primeiro começa pela própria estrutura da política e dos políticos que geram a política pública, que trazem ameaças; depois vem com interesses de achar que desenvolvimento é derrubar a floresta, o que traz grandes ameaças. Hoje o território do povo Paiter Suruí está ameaçado pelo garimpo. Tem garimpo no meio do território, temos quase 200 hectares do território desmatado, no pensamento de quem veio de fora e corrompeu alguns membros nossos, nossas pessoas, da nossa gente, para vir e dizer que pecuária dá lucro para sobreviver bem, ter qualidade de vida. Mas hoje nós estamos buscando parcerias para estudar a viabilidade de que é possível você desenvolver economicamente de forma responsável, planejada e consciente. Desenvolver sustentabilidade é importantíssimo para nosso futuro, para o futuro das nossas gerações e consciência econômica, porque eu não vejo que a economia é o final do futuro, a economia é o meio do futuro. A gente vai construir pelo meio o futuro, é isso que espero.

 

Pode destacar alguma história das fotos que você viu?

Posso destacar a foto do meu pai? Desculpa outros Paiter Suruí, não quero dizer que ele é mais importante do que os outros, mas o que eu sou hoje é porque meu pai me ensinou, só por isso. Foi ele que me educou e me falou palavras muito fortes, como: “Para você que quer ser líder, a primeira coisa que tem que ter é paciência, saber ouvir e saber ser criticado”. Toda estrutura que meu pai me ensinou, eu lembro. Quando eu falo, quando eu enfrento um desafio, a primeira coisa que eu lembro é: “ah, é verdade que meu pai me ensinou, talvez seja isso”. Quando me perguntaram uma vez por que você pensou, lá em 1997, em fazer o plano de gestão do seu território eu falei que não fui eu que pensei. O meu avô Yabnambi, que é o nome desse local aqui, já tinha esse plano. O meu pai me contou. Só agora eu consegui transcrever em português, junto com os técnicos, porque eu falei que é assim e assim, então transcrevi o plano que meu avô tinha para o seu povo, e agora a gente pode caminhar através disso para que a gente possa continuar a ser quem nós somos, os Paiter Suruí. Assim também meu pai me ensinou, me ensinou bastante o que é ser um líder. Ele também falou assim: "O difícil de ser um líder é ser humilde”. Se você tem humildade como líder, você pode chegar aonde você quer chegar, mas sem arrogância e todas essas coisas.

Como venho dessa história, vejo que só tenho que agradecer meu pai. Toda essa história que meu pai contou, eu vejo que é verdade, então eu tento usar isso hoje. Mas sou líder desde pequeno. Me tornei um dos grandes líderes do território com 17 anos de idade, e com 20 anos de idade eu fui líder do estado de Rondônia, para dirigir quase 43 povos indígenas do estado. Eu achei que eu tava que tava, né? Mas, como meu pai falou para mim, quem é arrogante é quem acha que líder não é humilde. Então isso eu aprendi, com isso eu consegui liderar quase 10 anos o estado de Rondônia. Consegui demarcar tantas terras indígenas com esse diálogo com o estado e com a frente de guerra. Nós temos poucos conflitos aqui. Tem, mas é muito pouco em comparação com outras terras. 

Conversando com os políticos, nunca me esqueço quando, em 1996, o Fernando Henrique publicou o decreto 1775, em que o estado interessado poderia entrar na Justiça para pedir a revogação da terra indígena. A partir disso, o estado de Rondônia entrou em cinco terras indígenas aqui em Rondônia: Uru-Eu-Wau, Mequéns, Massaco, Sakirabiar e Karipuna. Eu era coordenador do movimento indígena de Rondônia. Quando eu vi isso, o estado tinha um projeto com o Banco Mundial, eu chamei o diretor do Banco Mundial e falei assim: "Suspende o dinheiro, porque vocês estão dizendo que estão protegendo, vocês vão demarcar terras indígenas, e como é que o mesmo que vai demarcar está pedindo revogação? Isso é injusto!” Ele falou: "Não, vamos ter que conversar". E de repente me deu uma ideia na minha cabeça e falei assim: "Eu vou ter que fazer uma grande movimentação, manifestação”. Convoquei todos esses 43 povos indígenas em Porto Velho, vamos fechar o palácio do Governo. Aí, o governador falou: "Chama o líder deles!". Me chamaram, e eu fui lá. E o governador falou: “Ele é uma criança”. Eu falei: "Governador, a primeira coisa que você tem de fazer é me respeitar. Assim como você foi eleito pelo nosso povo do estado de Rondônia, eu também fui eleito pelo meu povo indígena. O mínimo que você tem que ter é essa compreensão de um líder. Você está com o seu interesse, e o seu interesse também está afetando o nosso interesse, porque o nosso interesse é ter o nosso território. O mínimo que a gente pode fazer é dialogar”. Aí ele falou: "Não, não sei o quê, tal e tal". Então tudo bem, eu vou pedir a suspensão do seu projeto. Nós fomos até Nova York, fomos recebidos pelo banco, e eu falei assim: "Eu dou prazo de 20 dias para você retirar isso, que é contraditório, do contrário o seu projeto vai embora”. 

O prazo que eu combinei com ele, ele fez. Eu falei que queria a assinatura do ministro Jobim − o Nelson Jobim, que era ministro da Justiça na época. “Eu quero a assinatura dele me avisando que você retirou o seu contraditório de lá.” O ministro mandou no fax, naquele tempo não tinha celular, não tinha essas coisas, só tinha fax. Eles mandaram um fax retirando. Foi uma grande vitória que a gente teve, e foi o único estado que conseguiu retirar esse contraditório das terras indígenas no Brasil. Fomos nós. 

O estado de Rondônia também tem uma outra história, pois é o primeiro estado brasileiro que conseguiu demarcar terra indígena sem contato, a Terra Indígena Massaco, que é da minha época de luta também. Então, nós sempre estamos tentando mostrar que é possível, sem trazer o conflito grande, mas com diálogo e conversando. 

 

Como é a relação dos Paiter Suruí com a igreja?

Hoje, quase 90% dos Suruí fala que estão atuando na igreja. Então, como líder desse povo que sou, eu sou muito neutro com isso, eu deixo cada pessoa com seu sentimento livre de escolher o que ele quer, seu direito individual. Mas como líder eu também tenho tentado discutir, criar governança dessas instituições religiosas para entendermos o que significa isso para um povo indígena. Como isso também pode respeitar a nossa cultura Mas isso já gera uma grande polêmica, e, quando gera polêmica, eu penso: não é isso que é a minha prioridade. Tento trazer essa neutralidade, mas sempre tendo o cuidado de que a gente precisa valorizar os nossos também, porque, no final, o que eu entendo, é que o mundo só tem um único Deus, o mesmo Deus que a igreja prega, o mesmo Deus que eu aprendi com meu pai, com meu avô, com essa espiritualidade de que você tem que respeitar o seu próximo, você tem que amar seu próximo, você tem que ser humilde, você tem que ser essas coisas. A mesma coisa que a igreja prega, então é o mesmo Deus. Agora, essa neutralidade com respeito a cada pessoa Paiter Suruí, eu tenho que ter como líder.

 

Como você vê os desafios das novas gerações e a substituição dos líderes e anciãos?

Eu tento preparar a juventude para várias situações, para lidar com isso. Tenho lutado para criar a universidade do povo Paiter Suruí, e muito em breve a gente vai ter uma universidade indígena, que vai administrar nossa espiritualidade, nosso conhecimento, nossa história. Para que os jovens se sintam atuantes, para implementar o que a universidade pode ensinar. A minha luta é essa, agora é só colocar para funcionar como universidade. Cuidar do nosso conhecimento para os jovens que não dão valor hoje e que podem precisar amanhã. Eu tenho que ter essa estratégia de preservar e conservar, por isso que nós estamos debaixo de uma grande árvore aqui. Isso foi plantado por nós através de um projeto chamado projeto Pamine, que é renascer da floresta. Eu queria mostrar e dizer também. O meu pai falou assim: "Se você quer mudar as pessoas, primeiro você tem que mudar você”. Aqui era uma fazenda que a gente tinha, a gente criava gado, e depois a gente acabou com gado, plantou essas árvores que vocês estão vendo aqui, que já deram sementes e já deram dinheiro. Agora tem que trabalhar, tem que estruturar muitas coisas para acontecer. O turismo é uma iniciativa que eu também ajudei e estou ajudando a construir, porque vai valorizar também. É a nossa cultura mostrar para as pessoas quem somos nós, e o turismo é uma área muito abrangente, em que a gente pode encontrar geopolítica, geocultura, geoconhecimento, economias, tecnologias, respeito, saúde, tudo aqui a gente encontra. Para você ver, aqui já teve artista, aqui já teve jogador, aqui já teve apresentador, aqui já teve pesquisador, aqui já teve universidade, tudo. Aqui a gente se encontra, conversamos e trazemos essas reflexões para que a gente possa ser, a gente tenta, ser exemplo para dizer que é possível desenvolver a Amazônia com conhecimento, com responsabilidade, usando tecnologia e principalmente o diálogo.

 

Almir Narayamoga Suruí nasceu em 1974 na aldeia Lapetanha, na Terra Indígena Sete de Setembro. É biólogo aplicado pela PUC Goiás e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Rondônia (Unir). Em 2010, foi eleito Labiway Esagah (cacique-geral) do povo Paiter Suruí. Atuou na Associação Metareilá e na associação Kanindé, promovendo a defesa do meio ambiente e da cultura indígena. De 2007 a 2015, foi conselheiro do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI). Ganhou o Prêmio Direitos Humanos pelo Instituto Internacional de Sociedades de Direitos Humanos, entidade ligado à ONU, 2008, o Prêmio Herói da Floresta pela ONU, o Prêmio Maia Lin pelo projeto Carbono Suruí e, em 2011, o Prêmio de Liderança Bianca Jagger Human Rights Foundation. Em 2024, ganhou o prêmio Nobel Verde. É coordenador executivo do Parlamento Indígena do Brasil.