Pequenas Áfricas
o Rio que o samba inventou
Texto curatorial
Áudio com a leitura do texto
A Heitor dos Prazeres atribui-se a ideia do Rio de Janeiro como uma “África em miniatura”. Antes dele, Lima Barreto já destacava os traços de “aringa africana” de uma região da cidade que, nas franjas do Centro elitizado e branco, concentrava numerosa população afrodescendente – despossuída, pobre e, sobretudo, orgulhosa de suas raízes e tradições. Naquelas latitudes, a chamada Pequena África foi palco de um fenômeno decisivo para a cultura brasileira no século 20, a invenção do samba urbano.
Noção em disputa dos pontos de vista histórico, cultural e até geográfico, a Pequena África tal como a entendemos se consolida e desaparece, fisicamente, entre a primeira década do século passado e o início dos anos 1940. É nesse intervalo que a região delimitada pelo Cais do Valongo e pelo Estácio, fronteira do Centro com os subúrbios, assiste ao nascimento de um tipo de samba que, longe de dar conta das numerosas variantes do gênero, vai ganhar o mundo a partir do lançamento, em 1917, de “Pelo telefone”.
Daquele momento em diante, consolida-se a percepção de que os quintais e terreiros são essenciais na reinvenção da sociabilidade da maioria afrodescendente e da identidade cultural brasileira. Para cada personagem notório, como Tia Ciata ou Sinhô, há um número não determinado de mulheres e homens que não inscreveram seus nomes na história, mas dela participam como sujeitos ativos.
Esta exposição parte da música para percorrer a intrincada rede de encontros, trocas e conflitos que ali se formou na primeira metade do século 20. Consciência política, religiosidade e solidariedade são inseparáveis da sofisticada produção artística que se espraia no espaço – ganhando uma cidade, o país e o mundo – e no tempo, ainda hoje pulsante em seu espírito dissidente de um país racista e desigual.
A partir da Pequena África histórica, propomos um percurso pelas Pequenas Áfricas que a ela se sucederam, menos um lugar do que um conjunto de práticas consagradas àquele modo de vida. Uma ideia pulsante em núcleos de resistência e ação sustentados por referências e valores de um Rio de Janeiro negro, para além dos clichês que se confundem com a imagem oficial da cidade.