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As séries Fotoformas e Sobras, de Geraldo de Barros

05 de novembro de 2025

A subversão artística de Geraldo de Barros (27 de fevereiro de 1923, Chavantes, SP – 17 de abril de 1998, São Paulo, SP) no campo da fotografia — caracterizada pela autenticidade, singularidade e complexidade de execução das obras que compõem suas duas principais séries fotográficas: Fotoformas e Sobras — buscou, desde seus experimentos iniciais na década de 1940, tensionar limites e cânones da fotografia, aproximando o meio fotográfico das artes plásticas através de práticas e investigações radicais de caráter conceitual e crítico voltadas para a desconstrução do figurativo e a afirmação da lógica construtiva em suas obras. Em especial com as suas redefinições de enquadramentos e múltiplas exposições, muitas vezes explorando pequenas áreas do negativo e intervindo também fisicamente nos mesmos, através de cortes, riscos e colagens, o artista rompe com padrões fotográficos tradicionais de sua época.

O Instituto Moreira Salles recebeu, na última década, cerca de 1.840 itens que compõem o acervo de Geraldo de Barros, composto pelos originais fotográficos das séries fotográficas completas Fotoformas (1940-1950) e Sobras (1996-1998). Além de adensar a riqueza e complexidade do acervo da instituição, esse conjunto apresenta uma possibilidade única e importantíssima de estudo para pesquisadores no campo da imagem e das artes visuais e para os profissionais que atuam no IMS nestas áreas.

Projeto Geraldo de Barros

Com a incorporação do acervo na instituição em 2014, um ambicioso projeto foi portanto delineado e estruturado a partir de uma iniciativa concebida e planejada conjuntamente entre a família do artista e a área de Fotografia do IMS desde o início das tratativas para a vinda do acervo para a instituição: a produção de séries completas de tiragens fotográficas contemporâneas em gelatina e prata, em laboratório, das séries Fotoformas e Sobras, para estudo, pesquisa e difusão plena da obra do autor.

O  Laboratório de Processos Fotográficos Históricos do IMS, especializado em impressões fotográficas analógicas e coordenado por Ailton Silva, mestre impressor com larga experiência e atuando há décadas na produção em laboratório fotográfico de tiragens em gelatina e prata em diálogo direto com importantes nomes da fotografia brasileira e também com arquivos relevantes da história da fotografia no Brasil, realizou um meticuloso trabalho de exame, estudo e produção das ampliações fotográficas a partir dos negativos originais da série Fotoformas e das composições visuais originais da série Sobras, objetos complexos construídos e delimitados em placas de vidro a partir de negativos recortados preto e branco e cor justapostos, sobrepostos e fixados com fita adesiva ao suporte, respeitando integralmente em ambas as séries, todas as instruções deixadas pelo artista.

O projeto como um todo — Fotoformas e Sobras — permitiu uma imersão intensiva na obra do autor, devido à dedicação quase exclusiva durante um ano e meio, entre meados de 2023 e final de 2024, para sua execução integral, possibilitando uma forte conexão e compreensão com o processo de construção deste amplo conjunto de imagens que viria a se tornar a interpretação mais completa dessas duas séries.

No processo de ampliação em laboratório dos negativos e composições visuais do autor, foram respeitadas as tomadas de decisões do artista em diferentes épocas de sua produção, como marcação de cortes, densidades, contrastes e tipo de papel mais próximo possível daqueles das tiragens originais.

Ao longo do projeto, a interação com as referências originalmente aprovadas pelo artista foram norteadoras das decisões tomadas no Laboratório. Decisões também acompanhadas por Fabiana de Barros, filha de Geraldo de Barros, e Michel Favre, cineasta e pesquisador da obra de Geraldo, que, desde os anos 1980, acompanharam pessoalmente Geraldo de Barros na recirculação e difusão da série Fotoformas produzida originalmente por ele nas décadas de 1940 e 50, e também na produção e criação da série Sobras na década de 1990 antes de seu falecimento, conhecedores profundos portanto da obra de Geraldo de Barros e parceiros essenciais durante toda a produção deste importante projeto.

Série Fotoformas

A primeira série de fotografias a ser ampliada foi Fotoformas, demandando um rigor técnico singular e um olhar atento às especificidades dos negativos originais produzidos por Geraldo de Barros. O processo não se limitou à mera reprodução das imagens, buscando resgatar a atmosfera e a densidade visual próprias das ampliações realizadas e aprovadas  pelo artista entre as décadas de 1950, 1970 e 1990. Assim, no Laboratório, cada negativo foi submetido a um estudo aprofundado, observando todas as variáveis de corte e as densidades das produções de cada época (imagens 1, 2 e 3). O objetivo compreende a produção de tiragens com maior fidelidade possível a essas interpretações feitas e aprovadas originalmente pelo artista.

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As imagens que tínhamos para dar partida a esse projeto eram as ampliações originais de época (1950, 1970 e 1990) supervisionadas e aprovadas pelo autor, em tamanhos não maiores que 30x40cm (mancha de imagem da fotografia, quase sempre sangrada). Fizemos algumas visitas a instituições que possuíam essas tiragens vintages produzidas e aprovadas por Geraldo, como a Pinacoteca de São Paulo, Sesc São Paulo e o Museu de Artes de São Paulo (imagens 4 e 5). Esse foi um passo muito importante para os trabalhos que viriam a seguir. Durante as conversas com Fabiana e Michel, sentimos a necessidade de manter essa leitura e proximidade; porém, precisávamos de uma identidade que diferenciasse as cópias produzidas pelo IMS. Assim, produzimos imagens 2 cm maiores que os vintages, ou seja, fotos quadradas não ultrapassariam 32x32 cm, e as retangulares não ultrapassariam 42 cm no maior tamanho, fazendo com que tivessem uma pequena diferença em dimensão das produzidas anteriormente em papel 30x40 cm, mantendo nestas tiragens contemporâneas sempre uma margem branca com marca seca que identifica o Laboratório de Processos Fotográficos Históricos do IMS como produtor destas séries, também numeradas e firmadas por Fabiana de Barros, representante da família e do legado do artista.

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A dificuldade de enquadramento foi um dos maiores desafios do processo, pois as Fotoformas são construídas sobre ângulos ousados e estruturas internas de grande complexidade visual (imagem 6). Muitas dessas fotografias possuíam orientações variadas de cortes, sendo algumas dessas variações sutis e outras mais abruptas (imagens 7 e 8).

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Em alguns casos foi necessária a confecção de máscaras em papel preto opaco (imagens 10, 11 e 12), em que, a partir da ampliação da imagem como guia (imagem 9), foram desenhadas e cortadas manualmente, seguindo fielmente as orientações dos cortes com contornos e geometrias mais orgânicas, uma das principais características da série, o que impossibilitou o uso do marginador como limitador da mancha para algumas das fotografias.

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Outro aspecto inédito apresentado pelo projeto são as fotografias, dentro da Série Fotoformas, denominadas de “Série Full”, que consiste na ampliação integral, sem cortes, da imagem dos negativos da série Fotoformas (imagens 14 e 15). As imagens assim ampliadas apresentam a totalidade do registro em câmera, incluindo também os registros de fábrica impressos no suporte, como marca do filme e número do fotograma, entre outros pontos importantes, inclusive para acompanhamento da conservação dos objetos. Esse aspecto torna essa série uma potente ferramenta de pesquisa. Olhar as imagens na sua integralidade é também ter acesso ao ponto de partida do artista, na tentativa de compreender a sua intenção.

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O controle da exposição à luz a fim de executar perfeitamente o contraste do preto e branco com máxima variação de cinzas foi outro aspecto central (imagens 17 e 18). As ampliações exigiram múltiplos testes de exposição e revelação, de modo a se aproximar das diferentes atmosferas que o artista produziu ao longo de décadas (imagem 16). Assim, o processo técnico se transformou também em gesto artístico e reflexivo, no qual o tempo histórico do artista e o tempo presente do laboratório se atravessam, e o resultado é uma reaproximação sensível da experiência de olhar que Geraldo de Barros propôs, uma fotografia que não apenas registra, mas constrói, e mesmo reproduzida, continua única.

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Alguns negativos chamaram bastante a atenção, principalmente pela intervenção direta nesses objetos. Não é incomum negativos riscados e/ou marcados com tinta nanquim, além de negativos cortados e remontados em orientações e rotações alternativas, fixadas entre placas de vidro adesivadas entre si; Neste aspecto, diversos destes itens permitem perceber e estabelecer claras semelhanças com processos e procedimentos adotados em sua série posterior Sobras. Acredita-se, portanto, que estes sejam alguns dos possíveis elos entre Fotoformas e Sobras.

Série Sobras

Se em Fotoformas o desafio residia na precisão geométrica e na reconstrução de um gesto modernista, em Sobras o Laboratório de Processo Fotográficos Históricos enfrentou um processo ainda mais delicado. Criada entre 1996 e 1998, essa série marca o retorno de Geraldo de Barros à experimentação fotográfica, mas agora mediada por uma nova matéria: a memória. Sobras nasce da colagem de negativos, pedaços de tempo e lembranças,  montados em placas de vidro com fitas adesivas, formando composições com fragmentos de vida e arte. Essa natureza híbrida e frágil tornou o processo de ampliação analógica um verdadeiro exercício de interpretação, preservação e absoluto respeito à vulnerabilidade da obra.

Os primeiros estudos de tamanhos e formatos foram realizados em colaboração com Fabiana de Barros e Michel Favre, que acompanharam todas as etapas do projeto. A primeira decisão do corpo técnico definiu que a mancha das imagens não poderia ultrapassar 22 cm ou 16 cm, ou seja, imagens mais retangulares teriam 22 cm no seu maior tamanho, e imagens quadradas 16 cm, levemente deslocadas para cima em um papel 28x36cm. Essa limitação foi essencial para garantir a integridade das imagens e manter a coerência com a identidade experimental da série, em que o enquadramento é sempre determinado pela posição física dos fragmentos fotográficos e pelas marcas das fitas que os unem (imagem 19).

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Ao contrário de Fotoformas, em Sobras, as imagens não possuíam margens tão regulares produzidas pelo marginador. As fitas adesivas utilizadas por Barros para fixar os negativos no vidro, integraram-se à composição visual e serviram como referência direta para a definição dos limites da ampliação — sabe-se que Geraldo testou bastante essa fita, até conseguir um material suficientemente forte, a fita linóleo. O material peculiar exigiu do laboratório um olhar criterioso, técnico e interpretativo, pois cada montagem carregava uma lógica própria de encaixe, sobreposição e densidade, o que permitiu a produção de imagens diferentes a partir de uma mesma matriz, sempre, claro, a partir das instruções deixadas pelo autor.

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A fragilidade do material determinou cuidados específicos. Os negativos colados em vidro apresentavam sinais de “vida”, isto é, alterações dimensionais e planares, com eventual risco de descolamento das fitas adesivas e presença de sujidades de origem, o que demandou uma série de testes nos ampliadores. A equipe buscou equilibrar o tempo de exposição de modo a evitar a exposição dos vidros a temperaturas que os colocassem em risco. Essa etapa foi decisiva para garantir a integridade das obras durante as ampliações e exigiu um constante monitoramento ambiental do espaço de trabalho. Ainda, para Fabiana de Barros, filha do artista, era fundamental que os negativos não fossem reparados ou tratados, entendendo que as alterações, ou mesmo deterioração, por conta da passagem das décadas, eram clara evidência do tempo e da vida agindo sobre uma obra em si também viva. Sobretudo, por manter, caracterizar e documentar a originalidade e ousadia artística de Geraldo de Barros.

Os negativos de Sobras provinham de filmes coloridos e preto e branco de viagens e de documentação pessoal, muitos deles já com deterioração acentuada. A instabilidade química desses materiais obrigou o uso de tratamentos específicos (imagens 24, 25 e 26) durante a revelação, a fim de restaurar parcialmente o contraste e recuperar as sutilezas de cores perdidas. O resultado foi um equilíbrio delicado entre a intervenção técnica e a preservação da pátina do tempo, uma busca por reforçar a sensibilidade e visibilidade da imagem sem apagar sua dimensão histórica e artística.

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O projeto Sobras previa cinco cópias de cada imagem, tornando o trabalho ainda mais minucioso. Cada cópia foi tratada individualmente e comparada, lado a lado, para que todas alcançassem o mesmo padrão. Essa prática, de precisão artesanal, demandou longas horas de comparação direta e ajustes finos de exposição e contraste. Durante o processo de retoque, as mesmas dificuldades se repetiram. O retoque foi feito de maneira pontual e discreta (imagem 30), com o objetivo de unificar a leitura da imagem sem mascarar os efeitos naturais do envelhecimento dos negativos. Atendendo ao pedido de Fabiana de Barros, que demonstrou ser a favor da “imperfeição” das obras, entendendo que a obra está viva, portanto, é intrínseca sua constante mudança (imagens 28 e 29).

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Das cerca de 300 imagens ampliadas da série Sobras, 70 possuíam referências diretas aprovadas por Geraldo de Barros. Essas obras serviram como balizadores visuais para as demais ampliações, orientando as decisões de contraste, densidade e escala. As imagens sem referência foram ajustadas tomando como guia essa linguagem estabelecida, garantindo uma coerência estética entre o conjunto. Todo o processo foi acompanhado e aprovado por Fabiana de Barros e Michel Favre, que zelaram pela fidelidade conceitual e pela integridade material das obras do artista (imagens 31 e 32).

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Ao final do processo, todas as cópias foram acondicionadas em materiais específicos de conservação (imagens 33 e 34), numeradas, carimbadas e assinadas, assegurando sua durabilidade e autenticidade. Esse cuidado evidencia que o trabalho técnico que ultrapassa a mera reprodução, é também um ato de curadoria e de escuta sensível da obra visual. Tanto em Fotoformas como em Sobras, cada ampliação não apenas preserva uma imagem, ela reconstitui uma provocação, uma memória e uma fragilidade. O laboratório se converteu, assim, em um projeto de extensão do ateliê de Geraldo de Barros, onde o fazer fotográfico continua a pulsar, entre luz e vidro, tempo e vida.

Este intenso trabalho de releitura do processo fotográfico de Geraldo de Barros resultou em duas séries completas de estudo — uma de Fotoformas, com 367 imagens que seguem as decisões e variações conhecidas de enquadramento praticadas pelo autor, em duas tiragens, acompanhada da série de 319 imagens sem cortes ou reenquadramentos dos negativos originais de Fotoformas (Série Full), também em duas tiragens, e outra de Sobras, com 281 imagens, em cinco tiragens, sendo que um conjunto completo de ampliações de cada série agora integra o acervo do Instituto Moreira Salles, com os demais conjuntos todos destinados à família do artista.

Esse projeto foi realizado, por um lado, com a colaboração e orientação ativa de Fabiana de Barros e Michel Favre, e, por outro, através de interdisciplinaridade, diálogo e integração de conhecimentos e especializações das equipes do IMS, notadamente o Laboratório de Processos Fotográficos Históricos, com Ailton Silva, Thamires Brito e Tiago Moraes; a Coordenadoria de Fotografia, com Sergio Burgi, Josiene Cunha e Joanna Balabram; a Gestão de Acervo, com Millard Schisler; o Núcleo de Conservação e Preservação de Acervo, com Clara Mosciaro; e o Núcleo Digital, com Joanna Americano Castilho.


Créditos das imagens: Ailton Silva, Thamires Brito, Geraldo de Barros/Série Fotoformas/IMS e Geraldo de Barros/Série Sobras/Coleção Fabiana de Barros/IMS.