O nome de Chiquinha Gonzaga evoca mais que a figura gigantesca da música brasileira, responsável por um legado de mais de mil obras, entre as quais brilham sucessos como Ó abre alas, considerada a primeira canção carnavalesca nacional, e O Corta-Jaca, que logo passou a designar igualmente um gênero musical, tamanha sua popularidade. O nome da compositora, maestrina e pianista é também sinônimo de uma mulher que, nadando contra a corrente de seu tempo, fez da paixão, em vários sentidos, uma alavanca para sobreviver e se destacar numa sociedade conservadora, machista, tolhedora. Uma audácia que lhe custou, por muito tempo, o reconhecimento de seu justo lugar na arte. No dia em que se completam os 170 anos de seu nascimento, em 17 de outubro de 1847, o Instituto Moreira Salles, que detém a guarda do acervo da compositora desde 2005, homenageia a prolífera artista e presenteia o público disponibilizando o acervo digitalizado de todas as partituras de Chiquinha Gonzaga, que morreu em 1935, aos 87 anos.
São 1.112 composições que passeiam por gêneros diversos, totalizando 24.644 páginas. “Estamos falando de tudo. Tem dança africana, abertura, valsa, baião, burleta, batuque, canção, canção brasileira, canção sertaneja... Tem comédia em um ato, em três atos. Tem as operetas. Ópera cômica, bufa, cômica, de costumes. É uma quantidade enorme de partituras”, enumera Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS.
Ao lembrar que na música existe, de maneira geral, uma imensa maleabilidade entre os gêneros, algo que nenhuma catalogação consegue dar conta ainda, Bia destaca que, dentro da obra de Chiquinha, essa mistura era ainda mais visível. “Ela era muito preocupada com o sucesso comercial que fazia, porque vivia de vender partitura, era uma profissional da música. Então há composições que ela lançou antes como tango, e quando o choro entrou na moda ela disse que era choro. Dá para ser? Então será. O fato é que, sem dúvida, ela produziu muito”.
Produziu tanto (sua última peça é de 1933, dois anos antes de sua morte) porque precisava e porque, desde a infância, Chiquinha sabia que seu destino era a música. Por ela abriu mão, aos 23 anos, do marido – com quem se casara aos 16 e que exigia dela, sem sucesso, o abandono da vocação – e dos três filhos, criados pelo pai ou parentes. Escolher ser dona do próprio nariz no lugar de ser esposa e mãe era algo impensável na época, e Chiquinha pagou um alto preço pela decisão. Em 1877, foi condenada à separação perpétua por abandono do lar e adultério culpável, sendo execrada pela família. Assim, aos 29 anos, já com uma segunda união desfeita, na qual gerou outro filho igualmente criado longe dela, Chiquinha começou a trabalhar para sobreviver, tirando do piano seu sustento como professora, música e compositora.
Ainda em 1877, a mulher que escrevera aos 11 anos sua primeira música, em parceria com o irmão, publicou a polca Atraente, um sucesso instantâneo. Aos poucos, dando aulas ou tocando em conjuntos pela noite (mais uma suprema heresia para uma mulher), Chiquinha foi se firmando como exímia compositora e maestrina, e em 1885 tornou-se a primeira compositora teatral do país, estreando a ópera A corte na roça.
Em agosto de 1895, ao levar para o palco a opereta burlesca Zizinha Maxixe, a compositora criou outro grande sucesso. Uma das músicas, o tango Gaúcho, caiu nas graças do público e popularizou-se com o nome de O Corta-jaca, intitulando a partir daí um gênero musical. No acervo digitalizado estão disponíveis a primeira edição, manuscritos e um rascunho da obra, que tem versos do ator Machado Careca – embora também fizesse letras, o forte de Chiquinha era a composição.
“Ela é surpreendente. É bem conhecida por uma meia dúzia de obras e, quando você ouve o conjunto mais amplo de músicas dela, percebe a fertilidade impressionante”, observa Bia. “Como ela tem uma linha de criação mais espontânea, mais natural, que pode ser vista no próprio Corta-jaca ou em Ó abre-alas, a gente nunca atenta para o lado mais elaborado da sua música. Ainda mais se a compararmos com Ernesto Nazareth, seu contemporâneo, que tem, na grande maioria das obras, um nível de elaboração, de virtuosismo muito grande. Embora não fosse virtuosística, Chiquinha era uma excelente pianista”.
A espontaneidade na obra da compositora pode ser medida em Ó abre alas, por exemplo, composta despretensiosamente numa tarde de 1899 em Andaraí, bairro onde Chiquinha morava, também sede do cordão Rosa de Ouro. Com uma letra simples e melodia que gruda nos ouvidos, a marchinha é considerada o marco da canção carnavalesca. E também, como anota a pesquisadora Edinha Diniz na biografia Chiquinha Gonzaga – Uma história de vida, “a que melhor sintetiza seu talento e seu espírito determinado: prova uma intuição extraordinária, capaz de perceber a força e a originalidade da festa popular que se tornaria manifestação da nacionalidade, e expressa, com a simplicidade das grandes criações, o sentimento do ‘povo da lira’ em sua passagem para a vitória”.
Mesmo com o machismo e a patrulha dos bons costumes nos seus calcanhares, embaralhando propositalmente sua vida pessoal com a profissional, Chiquinha tornou-se uma compositora de sucesso, principalmente porque escreveu para teatro. “Havia outras mulheres fazendo música na época, mas nada que se compare a ela em termos de popularidade”, diz Bia. “Eram compositoras muito mais bissextas e Chiquinha vivia disso, era profissional da música”.
A preocupação da maestrina, pianista e compositora com a profissão resultou numa luta incessante pela defesa dos direitos autorais. Em 1917 foi uma das fundadoras da Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (Sbat), entidade que abrigou seu acervo até a chegada ao IMS. Um acervo, lembra Bia, muito bem organizado graças ao empenho do português João Batista Fernandes Lage, último companheiro da compositora, pelo qual ela se apaixonou quando tinha 51 anos, e ele apenas 16. Por causa da grande diferença de idade, que tornaria sua vida ainda mais difícil diante da sociedade, a compositora apresentava João Batista como filho.
“É um conjunto muito especial, na verdade o maior acervo musical do IMS, e que não existe em nenhuma outra instituição”, conta Bia, lembrando que Edinha Diniz, cuja pesquisa sobre a maestrina também está sob a guarda do IMS, foi outra figura fundamental na organização do acervo. “Além das partituras, ainda há muita correspondência, fotografias, um arquivo bem heterogêneo, que pretendemos disponibilizar aos poucos”.
Um dos próximos itens do arquivo a ser disponibilizado na base de dados será provavelmente um catálogo de registros de músicas, com anotações feitas a partir de 1901. “É uma preciosidade, são 168 páginas com títulos, autores, datas. Achamos muita coisa do Pixinguinha aqui, por exemplo. Está no acervo porque ela lidava com a questão do direito autoral”, acredita Bia, que torce para que a música de Chiquinha seja ainda mais difundida, inspirando montagens que valorizem suas partituras originais.