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‘Amar é uma aventura heroica e insuperável’

09 de novembro de 2021
Rachel de Queiroz e Oyama de Macedo no Rio de Janeiro, década de 1940, quando a temática do amor começou a aparecer nas crônicas da escritora. Coleção Rachel de Queiroz/Acervo IMS

 

A imagem de Rachel de Queiroz está longe de ser associada a romantismo. Ao estrear, em 1930, com o romance O Quinze, confundiu até Graciliano Ramos, que, ao final da leitura, achou que o nome da autora era “pseudônimo de sujeito barbudo”. Não podia imaginar que uma mocinha de vinte anos incompletos, moradora da fazenda do Junco, no sertão do Ceará, fosse capaz de contar a tragédia da seca em prosa tão vigorosa e enxuta.

Na imprensa de Fortaleza, onde já publicava artigos antes do lançamento do livro que a consagrou, Rachel demonstrava interesse em temas sociais como o voto feminino, questões de educação, e nada dos floreios em prosa ou verso que suas contemporâneas cultivavam. Na crônica, gênero que, sem interrupção, praticou durante trinta anos – de 1945 a 1975 – na famosa "Última Página" da revista O Cruzeiro, esteve muito distante do lirismo do mestre dos mestres, Rubem Braga.

Mas o leitor atento perceberá que na década de 1940, quando já morava no Rio, a temática do amor é presente nesses textos semanais. E talvez haja um motivo: desde 1939 separada do primeiro marido, o bancário e poeta bissexto José Auto da Cruz Oliveira, com quem fora casada por nove anos, conheceu, em 1940, o médico goiano Oyama de Macedo, na época funcionário do Hospital Carlos Chagas, onde Pedro Nava era chefe da Enfermaria. Em entrevista a Isabel Lustosa conta a escritora que Nava tinha marcado um encontro com o colega no bar Zeppelin, mas, por algum motivo impedido de comparecer, pediu a Rachel, sua amiga e parenta, que fosse em seu lugar e justificasse a ausência. “E aí, até ele morrer, nunca mais nos separamos”, arremata ela.

No mesmo ano, Rachel e Oyama passaram a dividir uma casa em Laranjeiras, em rua que passa acima da Belisário Távora, entrando floresta adentro. Ali, onde ouviam cantos de passarinhos e cigarras, escolheram o dia 31 de maio de 1941 para oficializar a relação, dessa vez sem vestido de linho bordado pela mãe ou buquê de flor de laranjeira colhida no pomar dos Queiroz no sítio do Pici, em Fortaleza, na casa onde ela escrevera O Quinze e onde fora celebrada a união com Zé Auto.

Se ela vinha de um casamento fracassado, Oyama, por sua vez, desfizera o seu com Cecília Xavier de Barros. O novo casal não tinha mais direito à clássica cerimônia nupcial, e é possível que não a desejasse. Assim, bastou uma visita de dona Clotilde, mãe de Rachel, à casa de Laranjeiras, para que a união passasse a ser considerada aceita e o novo marido da filha entrasse para a família de fazendeiros do Quixadá, no sertão cearense. Apaixonada e feliz, ela escrevia à amiga Alba Frota em 5 de setembro de 1942: “Conseguimos chegar a um ponto de entrega total e recíproca, e a única definição para o nosso entendimento é o velho lugar-comum: viver um para o outro e pelo outro... e, se ele me exige tudo, me dá tudo...” – conta Natália Guerellus em A velha devorou a moça?.

 

Mais sólida ainda ficou a relação em 1945, com a mudança do casal para uma casa na rua Carlos Ilidro 25, na Cova da Onça, Ilha do Governador. Oyama trabalhava no Hospital Paulino Werneck, e assim podia vir almoçar em casa, onde Rachel, boa cozinheira, o esperava depois do trabalho, para o qual reservava todas as manhãs. As tardes eram destinadas ao cinema e à leitura. “A Ilha nos deu a solidão a dois, tão necessária para um casamento” – dirá ela mais tarde.

A Ilha ofereceu ainda novas oportunidades no campo profissional: no final desse mesmo ano Rachel deu início à colaboração semanal em O Cruzeiro, que, naquele momento, despejava nas bancas duzentos mil exemplares Brasil adentro a cada sete dias. Estreou com a sedutora "Crônica n0 1", transbordando sedução e certamente, de cara, fisgando o leitor. Em equilíbrio notável, apresentou-se como a sertaneja que nunca deixou de ser, mas aberta a receber e contentar os leitores da revista.

Tem dias em que eu dava dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui enjoada, abafada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo sem querer como figurante de um filme colorido.

“Pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis”, justifica, na mesma crônica, ao possível leitor amante dos “contos de amor”, das “coisas leves e sentimentais”. Não eram esses os temas recorrentes da cronista, mas ainda assim percebe-se a mudança de tom em “Meditações sobre o amor”, de 3/5/1947, em que, lembrando como é raro esse sentimento, afirma: “Não é a todos que se apresenta oportunidade de amar, nem se encontra capacidade de amar em todos a quem a oportunidade se apresenta. É mister que se reúnam capacidade e oportunidade, ocasião e pessoa”.

Pelo que escrevera a Alba Frota anos antes, era esse o seu caso, e se sentia no direito de afirmar: “Amar é jogo forte, só vale no tudo ou nada: amar é uma aventura heroica e insuperável”. Aí estava Rachel de Queiroz, mulher apaixonada que, um mês depois, em “Lua”, observa, e certamente não era à toa que concluía: “A lua do amor feliz nasce cedo, é a lua que sobe vermelha no horizonte crepuscular e desabrocha em todo o seu esplendor”.

 Rachel de Queiroz e Oyama de Macedo com índios por ocasião de viagem ao Amazonas, nos anos 1950. Coleção Rachel de Queiroz/Acervo IMS

 

No aconchego amoroso da Cova da Onça, ela começou a publicar, em folhetim, o romance urbano O galo de ouro, ambientado no submundo da Ilha. O dinheiro de adiantamento pelo trabalho permitiu-lhe, em 1950, embarcar com Oyama no Constellation da PanAir para a primeira viagem à Europa.

Quatro anos depois, com a morte da mãe, ela tomou posse das terras deixadas pelo pai e, com o marido, construiu a casa da lendária fazenda Não me Deixes. Conta ela nas memórias de Tantos anos que, de início, os caboclos ficaram meio ressabiados com a chegada daquele homem alto, moreno, bonitão, rosto comprido. Oyama fazia um tipo muito diferente dos cearenses, o que certamente deixava os sertanejos do Quixadá ainda mais desconfiados. Quanto a Rachel, não devia deixar de identificar nele certos ares de James Stewart, à época o já premiado ator e protagonista de Janela indiscreta, o clássico de Hitchcock. Quanto ao temperamento, era discreto, respeitoso, e por isso não demorou a vencer a cisma dos moradores da Não me Deixes, que não gostavam de intimidades fáceis. Deram-se muitíssimo bem. Mais que isso, desenvolveram uma amizade verdadeira.

O que aconteceu foi que ali o médico descobriu sua verdadeira vocação, a de fazendeiro. Perfeitamente integrado à vida rural, passava o dia com os caboclos, no mato, de onde extraíram toda a madeira para a construção da casa. Casa, aliás, projetada pela própria Rachel de Queiroz, com o conhecimento que adquirira nas fazendas da família. As afinidades entre os dois se realizavam de forma natural. Depois de erguida a moradia do casal, Oyama armava a rede na varanda, deitava-se, e ficava horas conversando com os moradores. Só mais tarde, ao despedir-se e entrar na sala de jantar, tomava o seu vinho, hábito de homem da cidade.

Em 1977, promulgada a lei do divórcio, Rachel e Oyama se casaram formalmente. Para ele, o ato era um pleonasmo,“repetição formal do que já existia”. “Eu e o Oyama fomos casados durante 42 anos. Nós vivemos, de fato, uma solidão a dois. Fazíamos longas viagens sem falar com ninguém.”

Infelizmente, há pouco dessa história de amor no arquivo de Rachel de Queiroz, que chegou ao Instituto Moreira Salles em 2006. O fato de ela ter estado sempre perto do marido justifica, talvez, a inexistência de uma correspondência expressiva entre os dois. Consta que tinham o hábito de trocar bilhetes de amor, mas esse material não foi incluído no conjunto chegado ao IMS. Além de meia dúzia de cartas, quase bilhetes, há, do marido, apenas um punhado de fotos, do qual apresenta-se aqui uma pequena seleção.

Oyama morreria em 1982. Na década de 1990, quando escreveu as memórias de Tantos anos, ela declarou, referindo-se às saudades deixadas por ele no coração dos caboclos da fazenda: “Ainda hoje – literalmente – choram por ele”.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.


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