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Amor,

22 de fevereiro de 2018

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual.   Antônio Xerxenesky escreveu “Amor,” inspirado por uma foto de Henri Ballot tirada em Nova York em 1961, uma das imagens reunidas na exposição O caso Flávio.

Nova York, 1961. Foto de Henri Ballot / Acervo IMS

 

Amor,

eu tenho duas coisas para te falar:

a primeira é que eu não aguento mais viver, eu não aguento mais isso que chamam de vida, eu não aguento mais acordar, isto é, me deitar, fechar os olhos, meu corpo ceder ao sono, minha mente se aquietar, eu abrir os olhos outra vez e descobrir que não morri dormindo, que continuo aqui, que o sol nasceu outra vez, o céu continua sobre a minha cabeça;

a segunda é que eu estou condenado a viver para sempre.

Por muito tempo eu quis escrever uma carta de suicídio. Por muito tempo eu pensei que tudo o que já escrevi até agora, e não estou falando só dos poemas que escrevi para conquistar alguém ou dos poemas que escrevi para ganhar prêmios e concursos, tudo o que eu já escrevi agora, todas as cartas que mandei pelo correio, todos os e-mails que foram codificados em 1 e 0s e enviados para um satélite através de ondas invisíveis carregadas de informação, passando por toda lista de compras do mercado anotada num bloquinho de páginas arrancáveis, toda lista de afazeres domésticos, afazeres burocráticos, até todas as minhas assinaturas, especialmente as minhas assinaturas, desde a primeira, indecisa, com letras infantis, demorada, como se eu tivesse medo de errar meu nome ou o meu sobrenome cheio de consoantes, até as últimas assinaturas, feitas com precisão para que pudessem preencher cheques ou contratos o mais rápido possível, todos esses escritos, e aí também entram os poemas, as ficções (as mentiras), todos esses escritos, por muito tempo eu pensei que faziam parte de uma longa carta de suicídio. Ainda assim, eu queria escrever outra, mas não faz sentido, não há motivos. Agora que sei que vou viver para sempre, esta se tornaria a carta de suicídio mais longa de todos os tempos, faria O homem sem qualidades parecer tão curto quanto um soneto, ou menor ainda, curto como uma assinatura. De modo que eu não vou escrever uma carta de suicídio. Mas mesmo assim eu gostaria de falar algumas coisas para você.

Eu poderia começar com quando eu descobri que estava condenado à vida eterna. Contar de quando eu amarrei uma corda no gancho que antes prendia um lustre, quando eu botei a cabeça na corda, quando eu chutei o banco, e quando eu caí no chão, ainda vivo, com pedaço do gesso do teto na minha cabeça. Contar de quando eu me isolei num quarto de hotel, levando comigo a faca mais afiada que eu tinha, fiz cortes em diagonal nos pulsos, apenas para acordar na ambulância, acompanhado da senhora de setenta anos que recebeu por engano a chave do meu quarto e me encontrou caído no chão. Contar de quando eu pulei da sacada em posição de mergulho e dei uma cambalhota acidental no ar, atingindo as minhas pernas ao invés da minha cabeça, e passei dois meses apoiado em muletas, com pinos de metal reestruturando meus ossos.

Há um provérbio que afirma que não há motivos para se matar, que cada vez que inspiramos, estamos uma respiração mais próxima da morte, então por que a pressa? Mas e se não for verdade? E se mesmo respirando bilhões de vezes, eu ainda estiver vivo, eu ainda acordar todas as manhãs?

Eu poderia falar do que me leva a querer, com tanta insistência, tirar a minha vida, pois é isso que a família e os amigos sempre se perguntam no enterro: por que ele fez isso? E é sempre mais difícil quando não há motivos concretos, quando ele tinha dinheiro (não muito), algo parecido a um emprego (de parasita social), amigos e família (que ele adorava). Eu poderia falar da sensação que tenho sempre que vou para a praia e olho o mar, porque o mar é a porta do oceano, e só o oceano é uma metáfora visual apta, adequada, para a tristeza. A tristeza, a verdadeira tristeza, é sempre oceânica, e sempre chega até nós em ondas. E, assim como o oceano, tem profundezas inalcançáveis, habitadas pelas mais horríveis criaturas abissais.

Você, a família e os amigos, podem dizer: “eu sei o motivo; é porque ele bebia”. E, sim, eu bebia, eu bebo, todos os dias, por volta das sete da noite, quando sinto a minha garganta apertando, quando sinto uma taquicardia sem motivo algum, e eu busquei ajuda, seguindo o seu conselho, eu fui até o centro e me perguntaram se eu ficava agressivo bebendo e eu respondi que não, e me perguntaram se a bebida já prejudicou meu trabalho e eu respondi que não, e me perguntaram se a bebida já prejudicou minha vida social e eu respondi que não, que a maior parte das pessoas fica alegre, expansiva, quando bebe, eu não, acho que a bebida apenas direciona o holofote para quem você realmente é, e a bebida me deixa quieto, me diminui, eu me sinto encolhendo até metade do meu tamanho, até um quarto do meu tamanho, até virar um grão, até ver as formigas caminhando ao meu redor, e sim, eu bebi muito hoje, e hoje mesmo, quando eu comecei a beber,  soube que não ia parar. Um oceano de bebida. Dizem que a bebida mata, mas meu fígado continua intacto.

Hoje eu misturei alguns barbitúricos no meu cantil e saí andando pela rua. Uma hora senti que não ia mais aguentar, o mundo se inclinou, fui dominado pela vertigem. Quis vomitar mas não vomitei, pois seria desperdiçar comprimidos. Então eu me sentei. E depois eu me deitei. E eu estou aqui, ainda. Quase pegando no sono. Pensando que talvez amanhã eu não acorde. Mas consigo ver, pelas frestas da pálpebra, que estou na frente de uma garagem. Logo aparece um carro. Logo vão reclamar que estou atrapalhando o trânsito. Logo uma ambulância vai me salvar. Não há esperanças: estou preso nessa vida eterna.

Amor, como você sabe, não sou um homem religioso, mas acabo de ter uma ideia: e se, desde a primeira vez, desde que eu amarrei aquela corda no teto, eu tivesse conseguido me matar, e se tudo isso que estou vivendo, esse chão, esse céu cinza, essa garagem, esse corpo do qual eu não consigo me livrar, essa mente da qual eu não consigo me livrar, e se tudo isso fosse o inferno, e se eu tivesse conseguido me matar desde a primeira vez e tivesse sido condenado a estar aqui, agora, deitado? E se eu estiver condenado a, de repente, abrir os olhos?

Antônio Xerxenesky é escritor e tradutor, autor de, entre outros, As perguntas (2017), (2014) e A página assombrada por fantasmas (2011). Natural de Porto Alegre, mora em São Paulo. (Foto de Renato Parada)