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Aquele abraço

30 de agosto de 2021

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação alguma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, o escritor João Silvério Trevisan se inspirou em uma imagem de Sofia Borges, artista com obras na coleção Contemporânea do IMS. A imagem integra a série A máscara, o gesto, o papel, em que Sofia registrou detalhes de uma sessão do Congresso Nacional, em fevereiro de 2017.

 A máscara, o gesto, o papel, de Sofia Borges. Coleção de Fotografia Contemporânea/ IMS

Alô, alô, gente amiga:
aquele abraço.

Pra você tão longe, aquele abraço.
E você caído ali na esquina, eu abraço.

Pra quem me esqueceu,
sim, a pandemia nos fez mais esquecidos,
então: aquele abraço.

Mil abraços às crianças abandonadas, nas casas e nas ruas.
Abraços mil às multidões de adolescentes sem rumo.

Abraços às mães solteiras desesperadas
e aos pais desempregados.

Às bichas, sapatas e às letras intermináveis
do alfabeto desejante,
meu abraço encantado, incessante.

Abraços perfumados às travestis
que sonham com um abraço
nas noites tórridas, de amor tão parco.

Abraços de fôlego às mulheres
ofendidas, brutalizadas,
que não desistem dos abraços.

Alô, alô, gente preta que o Brasil há séculos maltrata:
abraços fortes, inteiros e ancestrais,
para juntos resistirmos.

Aos indígenas invadidos, explorados,
abraços florestais, e matagais sem fim.

Aos povos oprimidos por tiranos:
aquele abraço indignado,
para lutarmos braço a braço, incansáveis.

Alô, desenganados da alegria,
que não mais esperam a esperança
e perderam o fôlego da vida,
abraços meio tortos, mas intensos.
Este que os abraça,
também partilha as beiras do abismo
cujo fundo contemplamos
com pavor e fascínio.

A quem traz o desamparo nas veias da alma,
abraços meio trêmulos, emocionados.

Aquele abraço às nossas dores,
tão malvistas e rejeitadas,
tão verdadeiras.
À solidão companheira,
abraço solidário.

Para a saudade, que guarda pegadas
da nossa passagem pelo mundo,
fica aquele abraço mais luminoso.
Do que nos sobrou
entre alegrias e tristezas,
a saudade faz a argamassa
que abraça o nosso mistério.

Abraços ao Gil, ao Caetano, à Gal, à Bethânia.
Quando puderem, mandem-me um abraço.
Não precisa ser já,
mas tem que ser bem apertado.

Alô, alô, gentes da minha amizade,
preciso sentir corações, peito no peito,
pra ter certeza de que no planeta
ainda há quem acredite
em abraços e afetos.

Sem esquecer um abraço meio perplexo
aos amores do passado
e seus adeuses que nunca passaram.

Àquele que me acolhe
todas as noites e manhãs,
deixo este abraço desbragado
para celebrar todos os dias
a desmedida
do nosso amor.

 

João Silvério Trevisan nasceu em Ribeirão Bonito (SP) em 1944. É jornalista, dramaturgo e roteirista, autor de 13 obras publicadas, entre elas Devassos no paraíso (1986) e A Idade de Ouro do Brasil (2019). Ganhou o Prêmio Jabuti e o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) por três vezes cada um. Comprometido com a defesa dos direitos LGBTs.