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Arquivo de Ruy Guerra chega ao IMS

20 de agosto de 2021
O cineasta Ruy Guerra. Acervo do moçambicano radicado há mais de seis décadas no Brasil chega ao IMS

Diretor de clássicos do cinema brasileiro como Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1964), o cineasta Ruy Guerra, nascido em Moçambique em 1931 e radicado no Brasil desde 1958, chega aos 90 anos em 22 de agosto com a certeza de que sua produção, para além do cinema, estará bem preservada e difundida, aberta a pesquisadores e amantes das letras. O Instituto Moreira Salles acaba de adquirir o arquivo pessoal do também roteirista, letrista, dramaturgo e poeta, que atuou em diversos segmentos do universo cultural. São mais de 2 mil itens, a maioria ligada à sua atuação no campo da literatura e da canção. Há 600 cartas e 400 documentos que informam sobre o processo de criação de roteiros, letras de canções, contos, poesias, romances e peças de teatro. E ainda 1.200 fotografias, pessoais e de sua vasta produção profissional, além de cartazes e prêmios recebidos em sua carreira, como o Urso de Prata do Festival de Berlim pela direção de Os fuzis.

Todo esse acervo, guardado no apartamento de Ruy em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, virá para o IMS em breve, onde será higienizado e catalogado. Rachel Valença, coordenadora de Literatura do IMS, diz que o material já chega bem organizado – o cineasta teve a ajuda do historiador Adilson Mendes nesta tarefa.

"O que está vindo para o IMS é o acervo de um literato, um escritor. Além dos roteiros para filmes, ele tem romances, contos, peças de teatro, e isso nos interessou muito, porque dialoga muito com nosso acervo", diz Rachel. "Além dos literatos, estritamente falando, temos no nosso acervo gente da área de teatro, como Augusto Boal, Paulo Autran e o crítico Decio de Almeida Prado. O teatro é muito próximo da literatura, e ficamos interessados nessa produção, que me parece mais vulnerável. Os filmes foram responsáveis pela grande projeção dele, e essa obra literária corre o risco de ir se perdendo. Não agora. Vamos cuidar disso."

Com a chegada do acervo ao IMS, toda a memória da vida e da carreira de Ruy Guerra estará acessível ao público em grandes instituições. Parte dela, inclusive a totalidade de sua contribuição para o cinema brasileiro, com matrizes de filmes como Kuarup (1989), Erendira (1983) e Ópera do malandro (1985), já se encontra na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio e no Arquivo Nacional.

"É nossa intenção fazer parcerias com essas duas instituições. Queremos nos associar para unir as pontas desse acervo localizado em três lugares e facilitar um pouco a vida do pesquisador. Assim, quando o pesquisador nos procurar, poderemos prestar esta informação, o que ele poderá encontrar em cada arquivo", diz Rachel.

No material que virá para o IMS, ela destaca a coleção "fabulosa" de cartas. Ruy se correspondeu com Cacá Diegues, Augusto Boal, Mario Vargas Llosa, Chico Buarque, Glauber Rocha – há até uma carta em que briga com o diretor de Deus e o diabo na terra do sol. Também manteve contato com vários atores, como Vanja Orico, José Lewgoy e o francês Jean Marais – todos seus colegas de elenco no longa SOS Noronha (1957), de Georges Rouquier. E ainda comunicou-se por cartas com Jean-Luc Godard, José Cabaço, Américo Soares e Murilo Salles, entre outros, por ocasião do convite da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) para se juntar aos esforços da criação do Instituto Nacional de Cinema e realizar, com cineastas estrangeiros,  os primeiros filmes nacionais no país que acabara de conquistar sua independência, em 1975. 

Cena de ensaio de Calabar, o elogio da traição. Documentos sobre a censura à peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, proibida de estrear em 1973, estão no acervo que chega agora ao IMS

 

Rachel também chama atenção para a valiosa documentação sobre a censura no período da ditadura militar no Brasil. "São peças, cartas de negociação com a Censura, documentos muito importantes que não podem se perder, de uma época que muita gente hoje quer fingir que não aconteceu. Mas é um fato, e um fato importante na história do país" diz ela.

Entre as fotocópias de documentos produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), certamente as mais valiosas se referem à peça Calabar, o elogio da traição, escrita em parceria com Chico Buarque. Com estreia marcada para 8 de novembro de 1973 no Teatro João Caetano, no Centro do Rio, o musical, para o qual 48 atores e músicos haviam ensaiado por dois meses, foi interditado horas antes de ser apresentada pela primeira vez. Do mesmo modo, canções do espetáculo (há originais manuscritos e datiloscritos de várias músicas, entre elas Tatuagem) também sofreram restrições, como Fado tropical. O próprio Ruy, em entrevista ao Globo em 2013, conta: "Quando gravamos o disco [Chico canta], a palavra 'sífilis' teve que sair de Fado tropical. No disco original, em vez de 'sífilis' ouvia-se um chiado, algo como shishsishs."

Rachel Valença ressalta que a aquisição do acervo vai permitir cruzamentos em pesquisas sobre o período militar e dramaturgia. "Reunimos, na coordenadoria da literatura, um acervo  majoritariamente da segunda metade do século XX, e acho muito bom que eles tenham de alguma forma ligações entre si. As cartas do Boal já estão conosco, chegam agora essas, é importante para que o acervo se constitua num corpus.

Em relação ao regime militar, ela cita o acervo do mineiro Francisco Iglésias, historiador, "mas com um pé fortíssimo na literatura", que se correspondeu com Otto Lara Resende e vários outros literatos. "Descobri uma carta de uma mulher, dirigida a ele, relatando episódios de tortura. Essa carta levanta uma ponta de um mundo que está lá, nos papéis, e a gente tem que tentar mapear."

 

Nani Rubin é jornalista e integra a Coordenadoria de Internet do IMS