Nada da selva escura cantada por Dante no Inferno ou da pedra de Drummond. No livro inédito Coração de verão ou oitent’anos, encontrado no acervo do poeta Armando Freitas Filho, guardado pelo Instituto Moreira Salles, o espaço é amplo, azul e se estende aberto ao céu e ao mar. Na continuação dos célebres versos de A divina comédia, de onde o poeta mineiro retirou o mote do meio do caminho, lê-se ainda, em tradução de Augusto de Campos, que o poeta segue “solitário, sem sol e sem saída”. Pois nos poemas de Armando, é justamente o sol o protagonista, como o título do projeto de livro deixa entrever. Ele está presente textualmente na metade dos catorze poemas ou esquentando, elíptico, outras cenas — o subtítulo da obra é cenas e poemas —, salpicadas de “pernas nuas”, suor, calor, praia; além das noites passadas em bares, varandas e motéis.
O livro é puro movimento. A começar pelos poemas sem título, que funcionam como um contínuo de planos; também há o vento, sempre evocado; os deslocamentos de versos na mancha gráfica, que deixam espaços em branco e criam uma espécie de fluidez espacial; as orações longas e coordenadas, com poucos pontos finais, que tornam contínua a leitura, como que a emular um passeio ao sabor do acaso entre o mar e o asfalto; ou ainda os termos em inglês que irrompem de associações lúdicas com os sons das palavras. Aqui, no meio do caminho, o poeta está nu — “nu e só/ no centro ou no lugar/ onde somente o sol/ sabe/ e assassina”.
O livro seria feito em parceria com o artista plástico e amigo Roberto Magalhães, ambos, na época, com 40 anos — daí o título, soma da idade dos dois. Em conversa por telefone, Armando vai aos poucos se lembrando do projeto inacabado; conta que o custo para a impressão foi alto e, por esse motivo, a coletânea não foi editada. Ainda que a obra seja inédita, explica que alguns poemas foram incluídos em livros publicados posteriormente, sobretudo Longa vida, de 1982.
A parceria de Armando com artistas plásticos é comum em sua carreira. Em 2001, editou, em tiragem artesanal, o álbum Sol e carroceria, com textos seus e serigrafias de Anna Letycia; com Rubens Gerchman, lançou, em 1977, o hoje raro Mademoiselle furta-cor, com oito poemas eróticos ilustrados; no ano seguinte, publicou o tabloide A flor da pele, diálogo poético com verbetes de dicionário e fotos de Roberto Maia — na opinião do poeta, a melhor coisa que escreveu.
Entre os poemas de Coração de verão..., destaco um, que remete à alternativa do título, ou oitent’anos. Começa assim:
“Valium, valei-me,
pois aos quarenta
eu não sei se eu sou eu
ou se eu sou ou,
aos quarenta
a vida começa a ficar mais curta: [...]”
É o penúltimo poema e ponto de inflexão para a mudança de tom que acontece no livro. Se até aqui foi só leveza, espaços abertos e saúde, a partir de agora, inicia-se uma espécie de balanço: “eu entro/ para sempre, para dentro/ da Casa dos Enta”. Como tudo tem seu fim, no último poema, é necessário “virar a página do verão”; e com ele também se vão “shorts”, “roupas -diamante”, “frenesi”, “tardes, manhãs, luares”. O verão “guarda,/ no sótão, o sol/ na mansarda, o mar/ e de cor,/ na lembrança/ os arco-íris, as cores todas/ de um punhado de confetes,/ caras e festas/ jogadas no vento”.
É também a chegada do outono, que colore com nova paleta a entrada na “Casa dos Enta”. Mas não é o caso de se abater — “não desisto de mim/ e de nada”, afirma o poeta. Talvez, sim, deixar escoar o excesso do verão, todo voltado para fora, e recolher-se numa melancolia branda, porém atenta. Isso porque sabe que, apesar do envelhecimento do corpo, “toda viagem/ se faz por dentro,/ como as estações/ se fabricam, invisíveis, a partir do vento [...]”.
Morto hoje aos 84 anos, será ainda longa a vida de Armando, que deixa rastros em ritmos, sons que se desprendem luminosos de seus versos para quem os quiser ler, ouvir, gritar, receber lufadas desse sol — esse que insiste.