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Blusa amarela

22 de junho de 2022

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação alguma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, a escritora mineira Carla Madeira, autora do consagrado romance Tudo é rio, inspirou-se em uma imagem de Alice Brill (1920-2013), fotógrafa, artista plástica, gravadora e ensaísta, nascida na Alemanha e radicada no Brasil. O IMS tem sob sua guarda 14 mil fotografias de Alice, que lançou seu olhar humanista sobre São Paulo e era uma talentosa retratista. 

Loja de utilidades domésticas. São Paulo, c. 1953. Foto de Alice Brill/ Acervo IMS

Finalmente, Maria Alice viu com seus próprios olhos. Olhos que poderiam ter olhado para todo um empório a sua frente, mas, que por uma dessas forças inexplicáveis, foram atraídos para fora, justo no breve e intenso instante: o da revelação. O apocalipse, pode-se dizer assim. O fim.

Quantas necessidades estavam ali dentro da venda abarrotada, dependuradas, empilhadas, latentes, esperando para serem levadas para casa. Quanta coisa pronta para ser escolhida: latas de mantimentos, bacias de todos os diâmetros e afazeres, gaiolas, rolhas, desentupidores, peneiras, etc. Coisas imprescindíveis no frenesi compulsivo das compras, ainda que minutos depois, fossem parar em uma gaveta esquecida, debaixo de uma pia de difícil acesso para os joelhos de Maria Alice e sua mãe, dona Zulmira.

Mas naquele dia, os olhos de Maria Alice não se comportaram como sempre faziam, quando ela, de posse de sua carteira recém-abastecida por um acerto de contas, se dava ao prazer indescritível de libertar demandas reprimidas. Não. Naquele terrível dia, aqueles olhos foram fisgados pela cena. E a cena, caros leitores, era forte.

É preciso, antes, algum contexto. Maria Alice era costureira, razoável. Começou costurando para si mesma. Sempre gostou de um vestido novo, de um casaquinho, de uma boa aparência. Para ir aonde? Ao centro, à venda, à missa – para ser sozinha com esperanças de não ser. A mãe, dona Zulmira, costurava para fora, tinha freguesia. Mas a vista foi ficando ruim, a coluna torta e as encomendas passaram para as mãos da filha. Moça esforçada, Maria Alice correspondeu à altura: não inventava muito, mas copiava bem. Um conserto aqui, um vestido ali, e as contas iam sendo pagas. Dona Zulmira aceitou a aposentadoria e se enfiou definitiva numa camisola. Fazer o quê? Era da cama para o banheiro, do banheiro para a cama, e ao longo do trajeto, os sons vigorosos e desinibidos de um intestino que já não funcionava silenciosamente.

Tal cenário provocou muitos constrangimentos à Maria Alice, especialmente por causa do carteiro. Jeremias passava todos os dias, não trazia cartas, mas entregava sorrisos. Aquela simpatia toda foi ficando à vontade: começou pedindo um copo de água fresca, depois entrou na sala atrás de um pouco de sombra. Foi indo, sentou-se na cozinha.  para tomar fôlego e não tardou a aceitar café com pão e manteiga polvilhados de falsa timidez.

Era dar três da tarde no relógio e lá estava Jeremias para a alegria de Maria Alice. Se ele, por um lado, era pontual, dona Zulmira não tinha hora, passava pra lá e pra cá, com seu passo barulhento espalhando um mau ar pela sala, sempre com olhos de mãe e má vontade de sogra. Mal Jeremias saía, ela profetizava com a boca firme: não presta.

Pois presta, dizia Maria Alice baixinho, sentindo uma pontada de mágoa da mãe. Tanto acreditava no que sussurrava, que, ao se ver em apuro, não pensou duas vezes em aceitar a ajuda de Jeremias, confirmando dentro de si que a mãe estava enganada. Foi numa sexta-feira. Maria Alice se comprometera a entregar uma blusa para uma cliente importantíssima no fluxo de caixa mensal, e já estava atrasada dois dias. Tratava-se de uma blusa amarela, acetinada, cheia de rendas e babados, que consumiu mais tempo do que o combinado para ser feita com perfeição. Valeu a pena, o produto ficou à altura da ocasião em que seria usado: um batizado. Mas, diante de tamanho atraso, acertaram que a encomenda seria entregue na rodoviária, no último segundo da prorrogação, na hora do embarque de sua cliente para a cidade onde se daria a festa.

Fosse só esse o problema, Maria Alice faria pessoalmente a entrega, mas junto com o atraso da blusa amarela vieram outros, e ela estava, como se diz por aí, apertada de costura. Jeremias, então, se ofereceu para embarcar a encomenda a tempo e a hora.  Maria Alice agradeceu encantada e fez questão de servi-lo com uma fatia generosa de torta gelada. Nesse dia, dona Zulmira foi e voltou muitas vezes e chegou a gritar da sala: “não presta!”. Mas o carteiro tinha prazer demais na boca para ouvir o insulto.

Dado o contexto, voltemos à cena que capturou os olhos de Maria Alice. No centro do quadro, o amarelo inconfundível. A blusa impecável estava sendo usada por uma moça, cujos cabelos dourados se derramavam como uma cascata de luminosidade. Bem ao lado, os dentes brancos e escancarados de Jeremias, à paisana. Ambos tinham os braços entrelaçados em agressiva intimidade. Não presta! Viu Maria Alice com os próprios olhos e, antes de ir tomar satisfação, comprou um martelo.

 

Carla Madeira nasceu em Belo Horizonte, em 1964. É jornalista, publicitária e autora dos romances Tudo é rio (2014), A natureza da mordida (2018) e Véspera (2021). Em 2021 foi a autora mais lida do Brasil.