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Caderno da Escandinávia: Otto Lara Resende

02 de julho de 2021

A primeira providência de Otto Lara Resende no caderno de viagem que levou para a viagem à Escandinávia, em 1965, foi anotar, na contracapa, em inglês, seu endereço no Rio:

To whom it will be concerned in case of missing: this block-notes belongs to 
Otto Lara Resende, Brazilian Journalist
Please send it to:
Rua Peri 879, Jardim Botânico ZC20, Rio de Janeiro, Brazil.

E depois, certamente ficou tranquilo, certo de que, se esquecesse o caderninho em algum café de Copenhagen ou em um barco de Estocolmo, o presto habitante das capitais dinamarquesa ou sueca imediatamente o remeteria para o Brasil, isso se, na primeira, não mais encontrasse Otto no Royal Hotel, onde se hospedou.

Seguro de que as minuciosas anotações em letra corrida nas quase oitenta páginas do caderno estariam preservadas, decolou no Brasil no dia 6 de maio daquele ano e, na condição de jornalista que visitaria fábricas, muitas fábricas, além de observar o modo de vida dos nórdicos, desembarcou em Copenhagen, a capital do primeiro dos quatro países que compunham o roteiro: Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega.

Nas visitas a fazendas pelo interior do país essencialmente na década de 1960, constatou que 85% das terras eram cultivadas por proprietários e tudo era extremamente mecanizado. Só as vacas não eram mecânicas, anota ele com seu proverbial humor, mas a ordenha, sim: “não há granja sem trator”, assim como muito o impressionou o centro industrial da cidade de Odense, no sudeste do país, onde passeou em um bosque que dá numa praça e ali, integradas ao cenário urbano, deparou com três vacas que exibiam “toda a dignidade”. Vacas solenes, assim as viu: “Trabalham com consciência profissional. Olha-se numa vaca, entende-se o que ela está dizendo: ‘Sim, caro senhor, sou uma vaca. Uma grandíssima vaca. Que quer o senhor?’”

Por isso mesmo intrigou-o o fato de que, gostando tanto de vacas, os dinamarqueses conseguissem matá-las para comer bife, e imaginou: “É possível que muito em breve possam fazer bife sem matar a vaca e cheguem a fazer manteiga sem nada tomar-lhe”.

Como era frequente acontecer com o Otto viajante, apesar dos incontáveis almoços, jantares, reuniões e companhias solícitas, arranjados pelos anfitriões, ele sentia falta da família e não deixava de ser assaltado por questões existenciais: “Que terrível solidão, Minha Nossa Senhora!”, exclamava a certa altura, mesmo depois de ter ouvido Tico-tico no fubá e Aquarela do Brasil. Ou talvez por isso mesmo.

Nada viu no país que justificasse o eco insistente das palavras de Marcellus, amigo de Hamlet, o trágico personagem shakespeariano: “Something is rotten in the State of Denmark” [Há algo de podre no reino da Dinamarca], palavras ditas depois da visão do fantasma do rei Hamlet, morto pelo irmão para lhe ocupar o trono e casar com sua mulher, mãe do príncipe da Dinamarca. Não, naquele país cujo território é apenas um pouco maior que o do estado brasileiro do Espírito Santo, reinava o hygee, palavra que, em dinamarquês, significa bem-estar, e traduz a maneira de ser dos habitantes.

Passado pouco mais de meio século da viagem, a industrialização e o desenvolvimento econômico dinamarqueses sobrepujaram a agricultura, mas o país ainda produz alimentos três vezes mais do que necessita, o que talvez fizesse Otto, se vivo fosse, repetir o que naquele tempo registrou: a Dinamarca é um conto de fadas que se tornou realidade. Com essa verdade, e com a biografia de Andersen na mala – não perderia a oportunidade de comprar o livro sobre a vida do clássico dos contos infantis na sua terra de origem –, partiu ele para a Suécia.

O primeiro fato que registra ao chegar em Estocolmo é que Ingmar Bergman, na época o já famoso diretor de O sétimo selo, está doente e fora da cidade, embora ainda dirija o Royal Dramatic Theater. A nota dá a impressão de que Otto pretendia encontrar o cineasta, mas é apenas o modo de sentir-se no país que visita, reconhecendo-lhe os habitantes, evocando seus mitos. Pelo mesmo motivo, lembrou do que chamou a “beleza fria” de Ingrid Bergman e Greta Garbo, o que me surpreende. Com relação à segunda, vá lá, mas Ingrid Bergman? Não a enigmática de Casablanca, mas a ardente Maria de Por quem os sinos dobram? Clara como a água, com seu olhar súplice e apaixonado?

Longe do mundo cinematográfico, voltava-se ele para o trabalho. Claro que se deslumbrou com as 14 ilhas que compõem o arquipélago de Estocolmo, mas no dia 14 de maio, logo de manhã cedo, devia visitar a fábrica de aviões SAAB, em Linköping. Palestras e mais palestras de suecos falando inglês com sotaque altamente sonífero: “Ai que sono, meu Deus!”, registra ele ao fim das exposições.

Tudo perfeito nas fábricas de móveis e máquinas de escritório. “É proibido pedintes, mas tocando, pode”. Viu-os de perto, nos cafés onde a primavera alegrava as cabeças louras sentadas às mesas. Por trás da eficiência e da correção suecas ele não deixava de perceber o egoísmo, o extremo egoísmo dos países desenvolvidos: “Que monstruoso reflexo do que há de pior na natureza humana. O refinamento, o excesso, os abrigos antiatômicos, o que há de sobra, de carros jogados fora dava para alimentar milhares de brasileiros”. Ainda assim, o visitante aprendeu como se diz amor, em sueco: kárlec.

Otto não está mais entre nós para ver que o egoísmo dos países ricos revelou sua face mais cruel durante a pandemia que castiga o mundo desde 2019. Como era previsto, abarrotaram-se de estoques da vacina, enquanto a África, depois de mais de um ano de doença, tem apenas um por cento do continente vacinado. Quanto ao Brasil, os motivos da escassez de imunizantes são bem outros, agora se sabe, mas não menos cruéis.

A perfeição sueca testemunhada por Otto caiu por terra durante a pandemia da Covid-19, quando, no início, o governo optou pela tese da imunidade de rebanho. Reviu a escolha meses depois, mas já era tarde: muitos súditos de sua majestade, a rainha Sílvia, de origem brasileira, tinham morrido, e a derrota do primeiro-ministro Stefan Lofven foi inevitável: pediu demissão no último dia 28. Enquanto isso, a tese, caduca, reverbera entre o abismo que se aprofunda entre Suécia e Brasil.

“Os cães não ladram e as crianças não choram”, anotou Otto diante da perfeição sueca daquele tempo, para, depois da reunião com a Associação dos Exportadores Suecos, desabafar, em seu caderno: “Ai, Deus meu Deus, dai-me forças para eu ir até o fim destes intermináveis países escandinavos”. A sorte é que Helena, sua mulher, o esperaria em Frankfurt, quando terminasse o tour escandinavo.

A expectativa do reencontro lhe dava forças, e assim seguiu ele para a Finlândia, aonde chegou em 19 de maio. De cara, viu que “o quintal do finlandês é o mar”. Todos têm seu barco. A programação no país, no entanto, não previa passeios, e sim visita à fábrica VALMET, de ar condicionado e outras máquinas, assim como a indústrias de papel, onde viu muitas mulheres idosas trabalhando. O alto padrão de vida não se restringia a Helsínque, a capital, era notório também na cidade de Jÿvaskylä, onde o amor era automático: “O marido puxa a alavanca e recebe seu preservativo”.

Certamente não deixaria o país sem tomar uma sauna, o que fez na cidade de Siivikkala. Se, por um lado, a programação menos extenuante lhe diminuía o cansaço, por outro abria lugar para o tédio: “A chatice aqui é de outra espécie”.

Felizmente a viagem se aproximava do fim. Ao chegar a Oslo, capital do último país, perguntava-se:  “Meu Deus, o que fazer com esta fatigante experiência escandinava?”. Sonhava em encontrar Helena em Frankfurt, e o que viu dessa vez na Noruega encontraria exatamente igual dois anos depois, quando voltou ao país. É o que se lê em Caderno da Noruega.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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