Assim como todo pesquisador que se preze, Paulo Mendes Campos estudava muito para desenvolver os trabalhos que fazia. Quem viu o documentário Poema barroco, sobre a vida do escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, talvez não imagine o quanto o roteirista, cronista e poeta se aprofundou na história das cidades históricas de seu estado natal, Minas Gerais, para dar conta do recado. Levado ao ar na série Caso Especial da TV Globo, em 1977, o episódio teve direção de Fábio Sabag e foi protagonizado por Stênio Garcia, que considera este um dos papéis mais importantes de sua carreira de ator.
A dimensão do empenho de Paulo Mendes Campos na empreitada pode ser constatada no caderno 039128, em que se encontram fartas anotações sobre cidades mineiras, dentre as quais Ouro Preto, onde Aleijadinho nasceu em 1738, e morreu em 1814. São notas relativas a arquitetura, história, arte, geografia, e, não exatamente por estas, mas pelo conhecimento que Paulo detinha em língua e literatura, já o chamei aqui de “erudito desengomado”, embora ele mesmo tenha me negado: “Sou um erudito sem erudição... tenho todos os instrumentos da erudição, mas a boemia não deixou”, registrou neste mesmo item 039128.
Fiel à natureza indisciplinada do caderno, o cronista, a certa altura, abandona as notas de roteiro do filme e parte para estudos de natureza muito diferente: passa a fazer uma galeria de bêbados famosos, classificados por países. Lista ainda personagens bêbados da literatura e se propõe a fazer pesquisa sobre poemas alcoólicos em várias literaturas. Não era tarefa pequena.
Em um outro caderno, o 039122 (no alto desta página), ele confessa: “Gosto de escrever por encomenda: eu que desejava deixar depois de uma longa vida um livro (bem pretensioso) de aforismos sobre arte literária e psicologia do artista”. Não deixou. Talvez o tivesse feito se sua vida tivesse sido mais longa: nascido em 1922, morreu aos 69 anos de idade, em 1991. Mas salpicou bons aforismos em sua obra, especialmente em Diário da Tarde, no qual reservou a seção “Coriscos na floresta” para o assunto.
“Se eu não tivesse nascido pra beber, muito bem: eu aprenderia”, escreve na contracapa do mesmo caderno. Frasistas como ele ou Otto Lara Resende correm o risco de serem citados popularmente mais por seus achados predominantemente divertidos, sem perda do fundo psicológico, moral ou filosófico próprio do gênero, do que por sua obra principal.
Pelo jeito, nenhum dos dois temeu o que pode ser considerado simplificação. De Otto seriam recolhidos inúmeros aforismos em publicações como o fez Benício Medeiros em Otto Lara Resende, a poeira da glória. Quanto a Paulo, como se leu aqui, a ideia irrealizada de fazer um livro com esse tipo de conteúdo, de autoria dele e de outros, como prova o caderno 039109, mostra que ele não tinha nada contra o gênero.
Antes de seguirmos, é preciso lembrar que esse caderno contém uma produção do autor intitulada Mundéu, da qual ele detalhou personagens, vocabulário e cenas inteiras. Em meio ao projeto, coletou frases de autores diversos e as registrou, como: “Amo a vida: como acabará, não sei. Amo a vida”, de Pasolini; “Que é a vida? É como se me perguntasses: que é uma cenoura? Uma cenoura é uma cenoura e nada mais se pode dizer”, de Tchekhov.
Muitas vezes anotou versos. São inúmeros. E aí vê-se com que refinamento fez seleção como esta: “E cega e bela e interminável rosa”, de Cecília Meireles, sem informar que se trata do segundo verso do primeiro terceto do soneto “Segundo motivo da rosa”:
E a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa, 1
que em tempo e aroma e verso te transmutas!
assim como anota “E sou uma lagoa iluminada”, de Drummond, omitindo a origem: último verso do segundo quarteto do soneto “A vida passada a limpo”:
Ó esplêndida lua, debruçada
sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu não banhas apenas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.
Baixas a um vago em mim, onde nenhum
halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lâmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.
De Manuel Bandeira, ele anotou o 12º verso do “Soneto inglês No. 1”: “Um dia chorarás... Que importa? Chora”. A escolha parece bem diferente das duas anteriores: não há aqui nenhuma metáfora. A força está no fatal desalento que se manifesta por meio da repetição do verbo chorar e pela interrogação que não presume resposta.
Na mesma linha desmetaforizada, eu escolheria meu verso preferido de Bandeira: “Ardente como um soluço sem lágrimas”, de “O último poema”. É verdade que, a depender da época, a preferência pode ser alterada, mas há muitos anos repito que este é o verso de minha predileção – desde que eu não pense muito nos outros, o que me impediria de fazer qualquer escolha.
Federico García Lorca era uma das grandes paixões de Paulo Mendes Campos, não podia ficar de fora desse caderno. Está representado no último e excepcional verso do segundo quarteto de “A Mercedes en su vuelo”:
Tu pensamiento es nieve resbalada
en la gloria sin fin de la blancura.
Tu perfil es perenne quemadura,
tu corazón paloma desatada.
De aforismos de Paulo Mendes Campos mesmo, há, dentre outros, os seguintes: “Deus nos cria, engorda e mata; somos os porquinhos d’Ele”, publicado no Diário da Tarde com pequena variação: Somos uns porquinhos e o Senhor nos cria, engorda e mata; “A situação humana está a um passo do cômico”; ou “O Brasil é um país onde um sujeito como eu passa por intelectual”.
É também da seção “Coriscos na floresta”, do DT: “Nada do que é humano me é estranho; a não ser a joie de vivre”. Erudito que renegava a própria erudição, como já se viu aqui, Paulo Mendes Campos compôs o aforismo a partir de um verso de Terêncio (180 a.C.–59.a.C): “Homo sum: humani nihil a me alienum puto”, escreveu o dramaturgo e poeta romano em Heautontimoroúmenos ou O atormentador de si mesmo: “Sou homem: eu não considero alheio a mim nada do que é humano”, na tradução de Paulo Rónai em Não perca o seu latim.
Ao indexar o verso de Terêncio, Rónai o ilustra com uma informação extraída de Machado de Assis desconhecido, de Raimundo Magalhães Júnior. Segundo o biógrafo, Machado se referiu à expressão latina Homo sum: humani nihil a me alienum puto pelo menos quatro vezes em sua obra, mas não a citava inteira para evitar incompreensões relativas ao inocente puto, na verdade primeira pessoa do presente do indicativo do verbo putare, que significa penso, considero. O Bruxo preferia não arriscar; garantia-se com o “etc.”: Homo sum et nihil humanum, etc.
Paulo Mendes Campos apropria-se do verso latino, acrescentando-lhe: “a não ser a joie de vivre”. Não que ele fosse um pessimista ou um triste. Sua estranheza em relação à alegria de viver certamente é aquela a se refere Philip Lopate em “Contra a Joie de Vivre”. O ensaísta americano não é contra a alegria espontânea de existir. O que lhe desagrada é uma certa representação social e opressiva do sentimento prazeroso de vida, que é, na sua opinião, íntimo, não precisa de estardalhaço, ou de ritualização para ser vivido.
Creio ser esta a posição de Paulo Mendes Campos em relação à joie de vivre. Prova disso, creio eu, está na crônica “Uma senhora”, em que ele faz o perfil de sua avó, dona Estefânia. Descreve-a como uma pessoa “verdadeira, simples, alegre como a água”. Alegria vital equivalente a elemento vital, sem mais.
1 O grifo no verso, assim como nos demais, é meu.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.