O nome Luiz sempre foi importante na vida de Ana Cristina Cesar. Professor, amigo ou namorado, ela teve um Luiz presente em várias etapas de sua vida de apenas 31 anos. O mais, vamos dizer, arrebatador talvez tenha sido Luiz Augusto Ramalho, o Meu LUIZ-mais-que-maiúsculo, paixão de adolescência que cruzou continentes – deixaram o Brasil para estudar na Europa – e terminou em “irmãos de alma e talvez de estética” – diria ele ao entregar ao IMS fotocópias da correspondência entre os dois.
Hoje as cartas integram o arquivo da poeta, assim como um conjunto de cadernos, entre os quais o intitulado “Proposta do Luiz”. O nome desperta curiosidade sobretudo para quem sabe que, para ela, Luiz não era pessoa comum. O deste caderno é Luiz Costa Lima, crítico literário e seu professor na PUC em 1977, onde ela concluía o curso de extensão de teoria literária.
O caderno onde registrava anotações das aulas não é menos bem cuidado do que os que fazia na infância, com todo o capricho de aluna aplicada. Universitária e adulta – estava com 25 anos –, tampouco deixou o hábito de desenhar nas mesmas folhas em que fazia notas bem redigidas, coerentes, prova da capacidade de se entregar a devaneios e, ao mesmo tempo, reter o que absorvia nas aulas. Nesta, registra a proposta teórica do mestre.
“Resumir é já interpretar”, provavelmente palavras que ouviu do professor, mas que não deixam de dar a medida do conteúdo do caderno: guardava o que julgava mais relevante. Pelo coloquialismo da linguagem, percebe-se que ela transcrevia as palavras de Costa Lima: “As minhas dúvidas mostram que eu não vejo o ensino como reprodução do saber. Eu dou o meu próprio instrumental contra mim”. Ou: “Formule e desenvolva uma questão que lhe tenha interessado”.
Ela desenha, questiona, faz lembretes os mais diversos, dentre os quais os de “trazer maçã para o Vítor” até comprar "O labirinto e a esfinge”, prefácio do livro de Costa Lima Teoria literária em suas fontes, de 1975. Mas a essência do caderno está nas interpretações do poema de Drummond "A máquina do mundo”. Ana Cristina estudou sistematicamente a análise que faz José Guilherme Merquior em Razão do poema e depois em Verso, universo em Drummond.
Depois de anotar a comparação que o também professor e crítico Silviano Santiago faz do mesmo poema, ressaltando as diferenças entre “A máquina do mundo”, de Drummond, e a “Visão da máquina do mundo”, de Camões, no canto X de Os Lusíadas, Ana Cristina, bem ao caráter indisciplinado do caderno, passar a escrever um texto de ficção:
"Estou me embebedando romanticamente entre os chafarizes; fomos saídos de uma boca me passam nos cabelos; passam homens delicados – ó os delicados! ó fome desta pele frágil e branca dos desfalecentes! Sou mulher grande, farta, poderosa, exclamo alto nas trevas românticas entre milhafres e podridões torcidas. Mas a água me turva nesta praça enquanto imploro aos frágeis que tomem a peito estas crianças que erguem pedras. E me encharco até molhar completamente as pernas."
Diferentemente de outros cadernos, como o Caderno de crítica, ou o Caderno de memorialista, que obedecem a uma organização programada, este é um caderno fragmentário por natureza, nem por isso menos revelador da personalidade de Ana Cristina Cesar.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.