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Caderno de bordo: Otto Lara Resende

09 de outubro de 2020

“Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar” – diz Otto Lara Resende em “Quem é OLR”, depoimento autobiográfico que deu a Paulo Mendes Campos, posteriormente incluído em O príncipe e o sabiá.

 

Trocadilho à parte, não é outra a impressão que se tem ao ler um diário de bordo seu, desde que não se esqueça a extraordinária Helena Lara Resende, mãe de seus quatro filhos e louvada por ele em muitos dos 25 cadernos, hoje em seu arquivo, no IMS.

O diário, catalogado sob o no 029898, começa em um sábado, 8 de agosto de 1959, dia em que a família embarca no Louis Lumière, no cais 25 do porto de Antuérpia, com destino ao Rio de Janeiro. Voltavam para o Brasil depois de uma temporada de dois anos em Bruxelas, a Bruxa, como abreviava Otto, onde ele foi adido cultural na Embaixada do Brasil.

 

André Lara Resende e Cristiana Lara Resende a bordo do navio Louis Lumière, agosto de 1959. Foto de Otto Lara Resende. Acervo Otto Lara Resende/IMS

 

Depois de anotar a presença de amigos que foram se despedir no cais, o que passa a merecer maior importância no caderno são os filhos André, Bruno e Cristiana. A caçula Heleninha, que completou o quarteto, perdeu a viagem: só nasceria em 1968, quando os pais já formavam um casal de meia idade, e seria “sozinha, toda uma razão de vida”, derrama-se o pai ainda em “Quem é OLR”.

A leitura do diário nos dá a impressão de que Otto embarcou os filhos como se os levasse ao parque. Junta-se a eles, foco de seu interesse e divertimento. De preocupação também, comprovando a responsabilidade e prazer que declarou ter no mesmo depoimento: “Como estado civil, sou casado, casadíssimo, com a família toda. Muito familiar. Familioso. Familial. Gosto do convívio dos meus filhos”. E tanto, que se dedicava inteiramente a eles, com cuidado mesmo de não se aproximar de companheiros de viagem. Assim evitava a convivência, por exemplo, com um casal e filha que sentavam em mesa vizinha, nas refeições, e logo apelidado de “triângulo chatósceles”.

De início, a excitação da viagem foi menor para Cristiana, de 4 anos de idade, que só queria vir para o Rio de trem, mas em poucas horas aprendeu a gostar muito do navio. Não terá sido sem um sorriso que Otto escreveu a respeito do modo como Bruno, de sete anos, se despediu do amigo Bernardo Gouthier, filho de Hugo Gouthier, embaixador do Brasil em Bruxelas, com quem Otto trabalhara. Segundo o pai, diziam bobagens e “se despedem no mesmo diapasão, em francês, com palavras mais ou menos inconvenientes”. Está claro que a fluência no idioma, adquirida na escola belga, certamente incluía certa riqueza vocabular.

Despedidas feitas, acompanha-se o alvoroço das crianças na exploração do navio, as correrias e reconhecimento das cabines 9 e 11, ocupadas pela família, mas onde o pai  pouco ficava: era convocado para a “vadiagem a bordo” com os meninos, a que se entregava com gosto. Deixava a arrumação das cabines com Helena, que por esse motivo se recusava a abandonar a tarefa para dar o adeus à Bélgica, na hora da partida do navio. “Primeiro o dever, depois a paisagem” – reconhecia, inconformado, o marido, até convencê-la a vir: “Exageradas, as qualidades também viram defeito” argumentara ele, com sucesso. Na verdade, a vista do porto de Antuérpia, o segundo maior do mundo, de “beleza mesmo, nada”, registra ele. Mas “familioso”, queria Helena a seu lado.

Otto Lara Resende com os filhos André, Bruno  e Cristiana durante a viagem de volta ao Brasil, em 1959, depois de dois anos em Bruxelas. Acervo Otto Lara Resende/IMS

 

Dali seguiram para o porto do Havre, onde o desembarque tinha um objetivo urgente: comprar boias para os meninos. Mas prioridade muda de ordem quando se é pai de uma criança curiosa como André, o filho mais velho, na época com 8 anos. Certamente impressionado com o funcionamento do navio, ele queria saber exatamente como é feito um iate, e Otto teve a sorte de ver um ali ancorado, com hélice, leme, tudo, o que facilitou muito a tarefa da explicação minudente a um menino que duvidava de tudo e questionava muito. As boias que esperassem.

Esse traço de André Lara Resende, criança, ficou consagrado por ninguém menos que Manuel Bandeira, quando o conheceu, em Bruxelas. O poeta foi apenas duas vezes à Europa: a primeira, em 1913, para tratar da tuberculose, internado no Sanatório de Clavadel, perto de Davos, Suíça, que hoje sedia o Fórum Econômico Mundial. Há um século, o ar da  montanha servia mais para curar alguns pulmões lendários, como os de Paul Éluard e Gala, que se casaria com Salvador Dalí. No sanatório, o médico, dr. Bödmer, não fez fé na recuperação do poeta de Pasárgada. Identificou “lesões incompatíveis com a vida” e justificou: “O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado”. Resultado do diagnóstico? Virou verso do poema “Pneumotórax”, de Libertinagem, e Bandeira morreu octogenário.

Na segunda viagem que fez à Europa, em 1957, acompanhado da holandesa Frédy Blank, a sua “grande querida”, incluiu Bruxelas no roteiro e aceitou convite para jantar na casa dos Lara Resende. O anfitrião cedo tratou de preparar os meninos para receber o imenso poeta brasileiro. Falou dele com tamanho fervor, exaltou tanta grandeza que André duvidou de que fosse conhecer um ser terreno naquele patamar. Bandeira chegou, magro e ágil na sua elegância franciscana, sorridente e humilde. Deliciou-se em ouvir Otto contar, na presença do próprio filho, a reação de ceticismo do menino. Ali mesmo, o poeta pediu papel e lápis e cravou “André”, versos de circunstância posteriormente incluídos em Mafuá do malungo, na edição das Obras completas. Não seriam poucas vezes na vida que o economista ouviria o pai repetir os versos bandeirianos:

André, André, André,
O Bandeira o que é?
É poeta ou não é?
André, André, André,
E você o que é?
É André ou Tomé,
Homem de pouca fé? 

Voltemos às boias. Depois de comprá-las, Otto, “familioso” sempre, achou medalhas de Santo André, São Bruno e Santa Helena; comprou-as também. Observava o porto, e quando voltou ao diário, em um de seus recorrentes momentos de gravidade, anotou: “Me pergunto se o Havre, bombardeado durante a guerra, teria mudado de cara, mostrado suas entranhas. Deve ter havido lua por cima dos escombros tranquilos”. Compartilhava a observação com o filho mais velho, sob os protestos de Bruno, o futuro advogado e diretor de teatro: “Mania de vocês dois, de sempre falar em guerra”.

Na verdade, a camaradagem entre os três se impunha. Foi com orgulho que, ainda no Havre, Otto entrou numa papelaria e viu os meninos conversarem com a balconista, mostrando todo o conhecimento das edições de As aventuras de Tintim, a série em quadrinhos criada pelo belga Georges Prosper, leitura que adoravam. André “fala como entendido”, citando todos os títulos da revista, lê-se no diário.

Se o pai sabia dar como um rei, recebia solidariedade integral como a de Bruno, que, depois de vê-lo perder duas partidas de futebol de mesa seguidas e ganhar a terceira, chama-o de lado, e cochicha: “Sabe por que é que você agora está ganhando? Porque eu rezei para você”.

Momentos de recolhimento para Otto eram quase impossíveis. Vez ou outra conseguia sossego para se deter no mar, que, visto da vigia da cabine, dava o que pensar. Nessas horas, o cansaço batia.  O “reumatismo belga”, dizia ele, se manifestava, certamente dando sinal do esgotamento causado pelas inúmeras providências tomadas nos últimos dias para deixar tudo em ordem e planejar a volta. Começava também a sentir uma espécie de ressaca, talvez consequência da intensidade com que vinha trabalhando em O braço direito, o romance que publicaria em 1963, a maior parte escrita em Bruxelas.

Mas o navio não deixava tempo para pensar muito em si. Além da “vadiagem”, havia a assistência às crianças quando o mau tempo fez o navio balançar muito. Sem contar a grande aflição por que passaram quando, um dia, ele e Helena dão falta de Cristiana. Saem a procurá-la, nervosos. Comissário, camareira, ninguém tinha visto a menina. Vasculham as cabines, correm por todos os lados, até que André resolve contar a trama dele, com a cumplicidade da irmã, quando viu que tinham esquecido de olhar o toalete da cabine 9. Otto relata o caso com “desfecho rápido”: “Cristiana estava quietinha fazendo cocô”.

O surpreendente para o leitor do diário é que Otto, que tinha o hábito de escrever nos cadernos da primeira à última página, interrompe a narrativa antes do final da viagem. Não se fica sabendo qual foi a reação da família, sobretudo a do pai, ao chegar à entrada da barra, ver de perto o  Pão de Açúcar. Ele era tão encantado com essa paisagem que, conta um jornalista amigo, quando os dois iam a São Paulo e, na volta, deparavam com tempo nublado no Aterro do Flamengo, Otto dizia: “Não valeu a pena ir a São Paulo”.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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