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Caderno de Lisboa: Clarice Lispector

16 de julho de 2020

Não terá sido sem orgulho diplomático que o poeta e escritor santista Rui Ribeiro Couto, autor do romance Cabocla, recebeu Clarice Lispector na embaixada do Brasil em Lisboa, em 1944. Afinal, ele se envaidecia muito da carrière, como gostava de chamar sua bem-sucedida carreira de diplomata, que começara em Marselha e se encerraria ao se aposentar como embaixador, em Belgrado, aos 65 anos.

Retrato de Clarice feito por Rui Ribeiro Couto, no caderno da escritora. Arquivo Clarice Lispector/IMS

 

Clarice, que se casara com o também diplomata Maury Gurgel Valente em 1943, mesmo ano em que estreara com o romance Perto do coração selvagem, deixara o porto de Natal, Rio Grande do Norte, no dia 19 de julho daquele ano de 1944, com destino a Nápoles, onde o marido a esperava em seu primeiro posto diplomático. Mas a viagem, que nada tinha de direta, obrigou-a a permanecer em Lisboa de 2 a 14 de agosto. Dali seguiria para Casablanca, para só depois pisar em solo napolitano. Naquele mesmo solo onde, havia pouco mais de um mês, em 16 de julho, os 5.081 soldados brasileiros da Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária, sob o comando do general Mascarenhas de Moraes, tinham desembarcado para se juntarem ao Exército norte-americano e varrer os alemães de Monte Castelo.

Nessa viagem, Clarice usou um caderninho, registrado no banco de dados de Literatura do IMS sob o número 001502, em que foi anotando nomes de lugares, horários, providências a serem tomadas, e algumas emoções. As notas contemplam sua vida de escritora, a curiosidade intelectual, a vaidade e seu interesse pelo mistério: “Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante”, registra, além de fazer rascunhos para o romance O lustre e o conto "A melhor mulher do mundo".

"Oser être soi même”, não deixou de anotar no caderno, digitalizado e disponível no arquivo da escritora. Certamente “ousar ser si mesma” constituía um risco como mulher de diplomata. Estaria suficientemente preparada para o papel? A impressão que se tem é que ela sabe o que a espera, e ainda assim está decidida a “ousar”. No futuro, suas cartas às irmãs Tania Kaufmann e Elisa Lispector revelariam desencanto e até mesmo irritação com o calendário de atividades sociais que obedecia no mundo diplomático.

Contar com a ajuda de Couto na capital portuguesa não deixou de ser providencial. Graças às indicações do escritor e então primeiro secretário, por exemplo, ela conseguiu se mudar para um hotel mais barato do que aquele onde inicialmente se hospedara. No entanto, à medida que os dias iam se passando – revela o caderno –, ela constatava que a entusiasmada presteza do anfitrião lhe era inconveniente e seria mesmo motivo de desprazer.

Página do caderno em que se refere à troca de hotel em Lisboa. Arquivo Clarice Lispector/ IMS

 

Lisboa foi o quinto posto da carreira diplomática de Ribeiro Couto, e ali, mais que nunca, ele vivia cercado de amigos, trabalhando com o ardor costumeiro. Adotou uma vida social de tal maneira intensa que sua mulher, Ana Pereira Ribeiro Couto, chamada de Menina, desistiu de acompanhá-lo: mudou-se para o Hotel Lutetia, em Paris, onde permaneceria até o final da carreira do marido.

Desse modo, coube a ele ser o anfitrião solitário de Clarice Lispector. Naquele momento, pouco lhe importou que a Europa ainda estivesse em guerra. Sucumbiu ao mistério dos “olhos de piscina” de Clarice, como os chamou Rubem Braga, a partir de uma observação de Manuel Bandeira. E não eram só os olhos. Os 23 anos da viajante, somados ao talento e à beleza, deslumbraram o quarentão Ribeiro Couto. A ela Couto fez mais que honras protocolares: excedeu-se nas manifestações de admiração e partiu para galanteios.

Movida por um misto de gratidão e repulsa, ela passou a sentir desconforto com o temperamento arrojado de Ribeiro Couto, homem impetuoso, exuberante, “um tornado em forma humana”, como certa vez Manuel Bandeira o definiu. Quis tomar posse de Clarice Lispector. Pretendeu ditar-lhe comportamento, mas foi obrigado a aceitar que ela, sem ter experiência, sabia muito bem o que queria. Em meio aos desvelos de anfitrião, Couto não demorou a lhe declarar o fascínio de que era tomado desde o Rio de Janeiro, onde tentava encontrá-la, passando, de propósito, pela rua Silveira Martins, no Flamengo, sabendo que Clarice ali morava com a irmã, Tania, depois da morte do pai. “Me desagrada, horrível esse derrame lírico”, desabafa ela no caderno de viagem.

"Me desagrada, horrível esse derrame lírico", escreve Clarice. Arquivo Clarice Lispector/IMS.

 

As anotações indicam que o futuro embaixador lançou-se à conquista com descontrolada avidez. Não se pode negar, no entanto, que acertou em cheio quando detectou, na personalidade de Clarice, três aspectos: “infância, vida profunda e alguma coisa áspera”. Resumiu ainda, de forma poética, a “animalidade banhada de luar” da visitante. Uma animalidade branda expressa no desenho que fez dela, datado de 2 de agosto (no alto desta página). “Deus meu me perdoai, dai-me real paz”, finaliza ela essa anotação, atormentada pelas investidas do primeiro secretário.

"Infância, vida profunda e alguma coisa áspera”; as investidas de Ribeiro Couto ocupam boa parte do caderno escrito em Lisboa. Arquivo Clarice Lispector/ IMS

 

Embora, para seduzi-la, Ribeiro Couto apelasse para o “derrame lírico”, percebe-se, pelas notas, que Clarice segurou com firmeza as rédeas da situação. Nas anotações do dia 8 de agosto, é explícita:

Que coisa desagradável, desagradável, desagradável. Ribeiro Couto jantou comigo na casa dele, já pela segunda ou terceira vez. [...] No carro, segurou minha mão, beijou-a muitas vezes, encostou-a no rosto. Eu fiquei fria de aborrecimento. Eu disse: que explosão. Ele disse: só interna e mais coisas. Que ele não tinha dormido por minha causa (ele tinha antes contado apenas a insônia). Depois de outras tentativas, que eu repelia vexada, ele disse que sentia muita ternura por minha vida, uma vida difícil. Depois viu mesmo o meu silêncio, e disse: mais tarde você vai ver, vou me vingar. Eu disse: como?! Ele disse: sem gestos.

“O tolo pensa que eu não sei nada sobre explosão, nem me conhece como me espera”.

Página em que escreve ter ficado "fria de aborrecimento". Arquivo Clarice Lispector/ IMS

 

Não deixa de ser engraçado imaginar o exuberante primeiro secretário, anfitrião ardoroso e descomedido, ser chamado de tolo pela mocinha genial dos olhos de piscina. Para ele, aliás, eram cinzentos, e é possível que os visse assim por efeito da luminosidade europeia.

Passado o terremoto lusitano que Ribeiro Couto lhe provocou, seguiu Clarice para Casablanca. No avião, retomou o caderninho para concluir, entre contraditória e aliviada: “R. C. é uma das melhores pessoas que conheço. [...] É bom que eu esteja casada e feliz – senão ele se apaixonava. Fiquei com pena de embarcar, com pena dele, se bem que não haja motivo”. Clarice parece sentir-se mais segura nos ares do que em terra firme. Longe do admirador, nas nuvens, de longe e do alto, enxergava o outro lado da moeda.

Sua permanência na Itália foi além de diplomática ou literária. Não se furtou a prestar solidariedade em hospital napolitano aos brasileiros enviados para lutar contra o nazismo de Hitler. Quantos jovens brasileiros, militares anônimos, internados no 45th General Hospital de Nápoles, terão encontrado consolo nas palavras de Clarice Lispector? O que terá dito ela àqueles heróis, com sua famosíssima dicção, naquele momento certamente impregnada de ternura e vigor? Eles ainda não podiam saber – e talvez nunca terão sabido – que estavam sendo confortados por um dos maiores nomes da literatura de seu país. Ignoravam que, assim como eles, aquela voluntária também se converteria em glória do Brasil.

Quanto a Ribeiro Couto, o que se sabe é que de 24 de agosto de 1944 a 2 de dezembro de 1945, ele escreveu a Clarice. Cartas pequenas, por meio das quais revelava acompanhar as notícias que ainda saíam sobre Perto do coração selvagem, ao mesmo tempo que pedia notícias de O lustre, o segundo romance dela, publicado em 1946, cujos trechos ele lera em Lisboa, nos originais.

A julgar pelo conteúdo dos arquivos de Ribeiro Couto, hoje na Fundação Casa de Rui Barbosa, Clarice não teria respondido suas cartas, e o alvoroço lisboeta terá permanecido restrito ao caderno de viagem.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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