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Caderno de Tchekhov: Paulo Mendes Campos

22 de dezembro de 2022

Mais do que quaisquer outros dos 55 cadernos que conservou em seu arquivo, sob a guarda do IMS, Paulo Mendes Campos deixou dois que especialmente realçam o seu método de trabalho.

 

Não há novidade em afirmar que esse poeta e cronista de primeiríssimo time era um leitor metódico. Que anotava, com critério, o que extraía das muitas leituras a que se dedicava, fosse no escritório de casa, no Rio, ou na Grota do Jacob, o sítio que lhe deu tanto prazer, perto de Petrópolis. Num e noutro, ele produziu sua magnífica obra, que inclui ainda a de tradutor, para cuja atividade recorreu muito aos cadernos, rascunhando neles diferentes versões de poemas até chegar a uma que lhe satisfizesse. Utilizou-os também para organizar a produção de crônica, que fica em torno das 4 mil. Delas fez ainda várias listas, separando-as de acordo com temas, imaginando possíveis antologias.

No caderno registrado sob o número 039085 (abaixo), por exemplo, constata-se que ele imaginou uma espécie de autobiografia, sem que precisasse escrever uma linha, valendo-se apenas do que já tinha escrito e publicado. Pensou até mesmo no título: Minha vida crônica, que, segundo a listagem, se estruturaria mais ou menos assim: “Carta a um amigo”, “O risadinha”, “Meditações imaginárias”, “Bom-dia ressaca”, “Maturidade”, “Insônia”, além de muitas outras, e, naturalmente, “Maria José”. Esta sobre sua mãe, aquela que “era meiga quase sempre e violenta quando necessário” e guardava na gaveta um revólver, presente do pai ainda na adolescência. Prevenida, não esquecia de manter uma caixa de balas perto do revólver. E aceitando a velhice com humildade, Maria José Mendes Campos, aos 70 anos, já não se importava em ser ofendida, mas “conservava o revólver para a defesa dos filhos e dos netos”.

Paulo Mendes Campos não pensou só em Minha vida crônica. Faria ainda um Diário esportivo, composto das crônicas sobre os diversos tipos de esporte de que tratou; Rolando no Rio, daquelas sobre a cidade; Galeria de gente espantosa, com os agudos perfis que fez de amigos ou personalidades conhecidas, e Bares do meu caminho. Intuitivamente, o jornalista Flávio Pinheiro, que não conhece os cadernos, observou parcialmente o plano do cronista: teve a ideia de organizar oito antologias com espécie de recortes, facetas diversas da prosa de Paulo Mendes Campos. De início foram publicadas pela Editora Civilização Brasileira e, já há algum tempo, em reedição pela Companhia das Letras.

Quanto aos planejamentos silenciosos do autor de O anjo bêbado, na verdade, tomam pouco espaço em seus cadernos, que serviam mais aos estudos, como já foi informado aqui. Paulo, que reconhecia em si a vocação para lexicólogo, fazia longas listas de vocábulos, pelos mais diversos motivos, sendo que o permanente era a curiosidade da aprendizagem que se refletiria na sua prosa elegantemente rica. A seu modo, com muita graça e ironia, acrescentava aos nomes listados nos cadernos outros significados, dotando-lhes de tom pessoal, como o fez, por exemplo, à palavra alcavala. Ou acontecia simplesmente de anotar palavras como a divertida algarismeira ou a lírica alentecer.

Alcavala – imposto de invenção espanhola sobre o produto vendido ao público. Vulgarmente, extorsão, eis o conceito antigo de nosso atual ICM.
Algarismeira – fofoqueira.
Alentecer – tornar-se lento, vagaroso.

Fez isso abundantemente como exercício de descobridor de nomes, de farejador de sentidos novos, de investigador de sons, ao mesmo tempo abastecendo-se de material para expor seu pensamento inteligente e exercer sua escrita naturalmente fluida. Nas redações de jornal ou no sossego de sua biblioteca, viveu em função dessa busca. Certamente faria coro à pergunta lançada pela escritora americana Patti Smith no livro Devoção: “Por que alguém se sente compelido a escrever?”. E segue ela, na tentativa de responder a si mesma:

A se isolar, a se envolver num casulo, no êxtase de sua solidão, malgrado as necessidades dos outros. Virginia Woolf tinha seu quarto. Proust, suas venezianas fechadas. Marguerite Duras, sua casa calada. Dylan Thomas, seu modesto casebre. Todos em busca de um vazio que pudessem encher de palavras. [...] Há pilhas de cadernos que delatam anos de esforços abortados, euforia esvaziada, passos incansáveis pelo chão. Precisamos escrever enfrentando miríades de lutas, como quem domestica um potro voluntarioso. Precisamos escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem certa dose de sacrifício: para dar voz ao futuro, revisitar a infância e para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de leitores.

“Pilhas de cadernos”, escreve Patti Smith, referindo-se aos seus, mas, sem dúvida, sabedora da existência desses mesmos itens pertencentes a escritores, entre os quais os de Tchekhov, que, em 2010, levaram o diretor de teatro Serguei Jenovatch a produzir a peça “Cadernos de notas”. Versa sobre o “o laboratório intelectual interno de Tchekhov, onde ele reunia enredos, imagens, frases, diálogos, pensamentos, situações”. Exatamente como fizeram tantos outros de seus pares.

Anotações que parecem sem sentido, frases brilhantes e soltas que aparecerão em determinado livro, ideias que serão desenvolvidas em uma narrativa, ou até mesmo um nome solto, nada deixa de ganhar significado no caderno de um escritor. Desse modo, logo nas primeiras páginas do hoje sob o registro 039108 (no alto desta página), Paulo Mendes Campos copia várias frases de Tchekhov. Podiam merecer a transcrição pelo simples fato de encerrarem boas ideias, de serem bem construídas, de representarem um bom resumo, de captarem uma verdade ou desmitificarem uma crença. Podiam e mereceram, mas o nosso cronista – veremos adiante – faria uso surpreendente do material.

Do escritor russo, autor de A dama do cachorrinho, ele anotou, para consolo de quem se atormenta com o desconhecido: “Só os imbecis e os charlatães tudo compreendem e sabem”. Identificado com a angústia mais comum do escritor, assim como Patti Smith, não deixou passar, sempre de Tchekhov: “Dia e noite sou perseguido pela mesma ideia obsedante; devo escrever; devo escrever. Oh, que vida estúpida”.

Nascido em 1860, Tchekhov era médico, formado pela Universidade de Moscou na década de 1880, e exerceu a medicina durante toda a vida, mesmo depois de ter se consagrado como o escritor da notável novela A estepe, de 1888. Por isso mesmo é célebre sua frase, também no caderno 039108: “A medicina é minha mulher legítima; a literatura, a minha amante”. Ou ainda mais longamente:

Agora, à véspera da morte, como há 20 ou 30 anos, continuarei acreditando que a ciência é a coisa mais importante, a mais bela e a mais necessária da vida humana, que ela sempre foi e será sempre a mais alta manifestação de amor; graças a ela o homem chegará a uma vitória sobre a natureza e sobre si mesmo.

Autor integrante do realismo russo, Tchekhov foi antirromântico também na vida pessoal. Casou-se aos 41 anos com a atriz Olga Knipper, viveram em cidades separadas e ele morreria três anos depois, em 1904. É dele também mais esta: “A amizade é superior ao amor. Meus amigos me amam, eu os amo e, através de mim, eles se amam. Mas o amor faz inimigos aqueles que amam a mesma mulher”.

Entre as frases do escritor russo, deparei ainda com: “Que é a vida? É como se perguntassem: o que é uma cenoura? Uma cenoura é uma cenoura e nada mais se pode dizer”. Eu tinha certeza de já ter lido a interrogação tchekhoviana em obra do nosso cronista brasileiro. E acabo de descobrir o que fez ele das muitas frases, inclusive esta, anotadas nesse caderno: compôs uma espécie de monólogo, juntando-as numa sequência estranha, mas harmoniosa, a que deu o título “Como disse o homem”, crônica publicada no Jornal do Brasil de 16 de agosto de 1987 e depois recolhida em O amor acaba, de 1999. No último parágrafo, explica que o monólogo foi composto com frases de Tchekhov, Shakespeare, Gide, Valéry, entre muitos outros, extraídas dos cadernos de notas. Voilà.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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